
No final do mês de junho, saíram a público as declarações de Britney Spears durante uma audiência virtual perante o tribunal de Los Angeles, naquele que foi mais um capítulo da luta da cantora contra o regime de tutela que lhe fora imposto. Durante os mais de vinte minutos do testemunho da artista, Britney alegou que a tutela a impedia de casar e ter filhos, acrescentando ainda que, devido ao mesmo processo, não pode remover o dispositivo intrauterino para voltar a reproduzir: "Eu mereço os mesmos direitos que qualquer outra pessoa, tendo um filho, uma família, quaisquer uma dessas coisas e mais", protestou.
A história deixou os Estados Unidos em choque. Muitos desconheciam que em pleno século XXI a possibilidade de retirar a liberdade reprodutiva de um indivíduo – no país que tem na palavra ‘Freedom’ praticamente um slogan nacional – ainda seria uma realidade.
O caso Britney - recorde-se que o regime atual origina do ano 2008 após uma crise de saúde mental da cantora - levou a que a imprensa norte-americana ‘desenterrasse’ o caso Buck vs Bell de 1927: uma mulher chamada Carrie Buck recorria à justiça para contestar a esterilização forçada de que era alvo por parte da família, e tudo porque a considerava ser de intelecto limitado. Quando Carrie foi violada por um familiar e engravidou, a família transportou-a a uma instituição que a impedisse de reproduzir. O tribunal ignorou os argumentos de Carrie e aprovou a sua esterilização, porque seria "melhor para o mundo se a sociedade impedisse aqueles que são manifestamente inaptos de continuar a sua espécie", palavras redigidas pelo juiz Oliver Holmes Jr como reflexo da opinião maioritária do grupo de juízes.
Este caso criou um precedente que levaria à limitação reprodutiva permanente de cerca de 70 mil norte-americanos, a maioria mulheres, numa decisão que nunca foi revertida e foi utilizada num ano tão recente como o de 2001, segundo conta o jornalista Adam Cohen no programa da NPR, ‘Fresh Air’. Adicionalmente, é importante denotar que a remoção da liberdade reprodutiva está longe de ser algo do passado: em declarações à ‘The 19th’, a professora de Direito, Melissa Murray, afirmou que "a esterilização forçada, quer temporária, quer permanente, é bastante comum nos Estados Unidos, nomeadamente na comunidade deficiente." O mesmo artigo indica que em 2020, um denunciante terá alertado para a esterilização forçada em imigrantes ilegais num centro de detenção no estado da Geórgia.
E em Portugal? Em 2015, uma jovem de 20 anos foi esterilizada em Santa Maria da Feira, após pedido da mãe. De acordo com o jornal ‘Público’, quando o Hospital de São Sebastião explicou que o consentimento judicial era imperativo para um procedimento deste género, a progenitora decidiu, ao invés de o requerer, pedir a interdição legal da filha, tornando-se assim tutora legal. Após a insistência da mãe, a equipa médica acabou mesmo por executar a intervenção de laqueação das trombas da jovem. Contactado pelo diário na altura, o jurista André Dias Pereira afirmou que o hospital havia "cometido uma violação do procedimento previsto pelo Direito."
Finalmente, em 2016, foi lançado o relatório das Nações Unidas referente à avaliação de Portugal no que concerne ao cumprimento da Convenção dos Direitos para as Pessoas com Deficiência. Na página 6 do documento pode ler-se que, em Portugal, "as pessoas com deficiência, especialmente aquelas que foram declaradas legalmente incapacitadas, continuam a ser sujeitas, contra a sua vontade, à terminação da gravidez, à esterilização, à terapia electroconvulsiva ou a intervenções psicocirúrgicas", violando, segundo o relatório, o artigo 17 da convenção que ratificara em 2009, relativo à proteção da integridade da pessoa deficiente.
A resolução da situação de Britney Spears não tem ainda fim à vista, mas da mesma pelo menos já resultou em que os holofotes, aqueles que durante anos lhe foram dirigidos dentro e fora dos palcos, fossem, nem que seja por um instante, apontados a uma realidade amplamente ignorada e que afeta milhões de pessoas pelo mundo.