A herança (e 40 milhões de dívidas) ou a vida? Como Maria de Jesus, a viúva de João Rendeiro se tentou safar... e não conseguiu
Maria de Jesus Rendeiro assinou uma declaração a repudiar a herança do marido e as dívidas deste aos credores do BPP passam para a alçada do Estado. Que é o mesmo que dizer que são os impostos dos portugueses que vão pagar "a conta". Mas não é isto que a vai salvar do processo de investigação e do cerco apertado que os tribunais lhe montaram.
Maria de Jesus Rendeiro, 69 anos, a mulher que o ex-banqueiro João Rendeiro, abandonou à sua sorte numa moradia de luxo com 14 assoalhadas e três cadelas na Quinta Patiño, em Cascais, em setembro de 2021, ao fugir de Inglaterra para o Dubai num jato privado e depois deste estado árabe num voo da companhia aérea Emirates para a Cidade do Cabo na África do Sul, assinou dia 8 de setembro uma "declaração de repúdio" da herança do marido, que se suicidou na prisão de Westvill, em Durban, na madrugada de 13 de maio último.
Com uma singela assinatura, a viúva de João Rendeiro, e sua única herdeira, abdicou da herança do marido e deixa assim de ser responsável pelas dívidas, que agora passarão para a alçada do Estado português, que fica responsável por pagamentos futuros a lesados com a falência de Banco Privado Português (BPP).
Apesar das dívidas existentes, que com juros já ultrapassaram a 40 milhões de euros, passarem para o Estado, há credores do banco que poderão nunca receber o dinheiro a que têm direito, após processos judiciais complexos que se arrastarão no soalho dos corredores dos tribunais.
UM TESTAMENTO A BENEFICIAR A SUA "MARIA"
Antes de se suicidar na casa de banho da prisão, João Rendeiro tinha acautelado o futuro da sua "Maria", como carinhosamente lhe chamava. Nas mãos dos seus advogados deixou um testamento legal onde declarava a mulher, Maria de Jesus Rendeiro, "caso lhe sobrevivesse", herdeira de todos os bens e valores que juntou ao longo da carreira como investidor e banqueiro.
Sem filhos, João Rendeiro chegou mesmo a afirmar, na sua biografia, que a sua fortuna seria entregue à sociedade, ou seja, ao Estado. Só que nada disso lhe sobreviveu. Os milhões de João Rendeiro esboroaram-se após três condenações judiciais. As dívidas e indemnizações por pagar somaram 34,235 milhões de euros, mais os juros de mora, e os vários bens conhecidos foram arrestados, onde se inclui a famosa e polémica coleção de arte Ellipse, com 124 peças, que gerou uma novela 'kafkiana' e acabaram apreendidas pelas autoridades.
A viúva de João Rendeiro prescindiu da herança do antigo banqueiro numa declaração assinada no Cartório Notarial de Oeiras e entregue ao Tribunal da Relação de Lisboa, declarando que "repudia a herança", ficando livre do pagamento das dívidas e indemnizações que o marido, condenado em três processos distintos, deixou por pagar.
Neste momento, mais de 40 milhões de euros não foram pagos à comissão liquidatária do Banco Privado Português, ao embaixador Júlio Mascarenhas e ao Estado, às quais se juntam múltiplas coimas que foram aplicadas pelos reguladores devido às más ações de Rendeiro enquanto presidente do BPP.
VIÚVA NÃO SE LIVRA DA JUSTIÇA FACILMENTE
Apesar de Maria de Jesus Rendeiro repudiar a herança do falecido marido, isso não significa que a Polícia Judiciária e o Ministério Público possam colocar uma pedra sobre a investigação em curso à viúva, acusada pelo desvio de algumas obras de arte, da coleção que entretanto foi totalmente apreendida. As autoridades judiciais acreditam que a viúva, na qualidade de fiel depositária dos quadros arrestados ao ex-banqueiro, sabia das falsificações e do desvio, por venda, de algumas obras. No âmbito do processo 'D’Arte Asas', Maria de Jesus Rendeiro esteve em prisão domiciliária, mas foi libertada em maio deste ano, logo após a trágica morte do marido na África do Sul.
A investigação ao circuito do dinheiro desaparecido do BPP conduziu os inspetores a uma offshore chamada Octavia International Foundation, sediada no Panamá onde estavam depositados mais de 7,69 milhões de euros. Conta a que Maria de Jesus Rendeiro também tinha acesso.
Além desse valor, que terá circulado por uma outra offshore em Hong Kong, uma conta bancária titulada por João Rendeiro num banco na Suíça foi mexida enquanto ex-banqueiro estava na prisão, isto entre 22 de novembro de 2021 a 26 de janeiro de 2022. Foram levantados em dinheiro 19.910 euros e investidos mais de 346 mil euros na compra de ações.
Recorde-se que Maria de Jesus Rendeiro esteve, durante uma parte desse período em prisão domiciliária, com pulseira eletrónica, alegadamente impedida de aceder a contas bancárias ou de realizar quaisquer movimentos de dinheiros.
O MOTORISTA QUE GARANTIU CASA DE LUXO À PATROA
No meio de todo este processo, as autoridades acabaram por descobrir que o motorista de João Rendeiro, Florêncio de Almeida, comprou apartamento de luxo na Quinta Patiño, em Cascais, por 1,15 milhões de euros, que cedeu com usufruto por 201 mil à mulher do patrão, local para onde ela foi residir com uma irmã assim que a justiça a colocou em prisão domiciliária, com pulseira eletrónica. A propriedade era um imóvel da banca que estava na lista do crédito malparado da Caixa Geral de Depósitos e foi comprado a pronto pagamento por Florêncio de Almeida, motorista de João Rendeiro em dezembro de 2020
Na sequência da fuga do banqueiro e da descoberta de obras de artes vendidas, falsificadas e escondidas, as autoridades arrestaram também a moradia de luxo com 14 assoalhadas, instalada em dois lotes da Quinta Patiño, o lote 80, que ocupa meio hectare, e segundo a imprensa pode valer até 5 milhões de euros, e o lote 81, que é ainda propriedade do ex-presidente do BPP.