Invasão da Ucrânia exorciza fantasmas de Ljubomir Stanisic. O testemunho do menino guerreiro que "matou" para não morrer
Uma imagem a negro no Instagram. Afinal, o que tem o 'chef' Ljubomir Stanisic a ver com esta guerra, que está só a começar? Saiba o que o rosto de Hell's Kitchen já passou, numa outra guerra, ainda menino, o que teve de fazer para sobreviver. Ele viveu aos 13 anos a guerra na Bósnia e sabe bem os traumas na alma e as marcas no corpo que um conflito armado pode deixar. Foi "menino guerreiro" e deixa o seu testemunho. Doloroso.
O 'chef' jugoslavo Ljubomir Stanisic, de 43 anos, deu um grito de alerta e de revolta nas suas redes sociais em relação ao que estamos a assistir nas televisões com a invasão da Ucrânia pelas tropas russas de Vladimir Putin.
"Uma guerra não é só uma palavra. Uma guerra não é um acontecimento que passa na televisão", disparou o cozinheiro que foi menino guerreiro na terra que Josip Broz, mais conhecido como "Tito", conseguira unificar numa grande federação, mas que se desmembrou em 1989 e deu origem a uma guerra étnica, a primeira na Europa após a Segunda Guerra mundial.
"Uma guerra nunca é só aquilo que vemos, os tiros que ouvimos, os bombardeamentos que sentimos", escreveu, revoltado com a normalização que o Ocidente, ainda meio anestesiado e amedrontado com as notícias, estará a fazer do conflito armado em escalada entre as duas nações eslavas.
Para 'chef' que conduz o programa de talentos culinários 'Hell’s Kitchen', na SIC, esta invasão da Ucrânia é uma guerra e deve ser denunciada em todos os seus sinónimos, doa a quem doer, mesmo a quem não quiser ver: "Uma guerra deixa marcas para sempre - no corpo e sobretudo no coração, nos pesadelos à noite, nas memórias que tentamos mas nunca conseguiremos apagar…"
O COZINHEIROS DE CAUSAS E DE LUTAS
Talvez por isso, na sua publicação na rede social Instagram, Ljubomir tenha divulgado que "uma guerra não é só uma palavra, 'porra'. Não podemos permitir. Ninguém tem esse direito!…" e tenha depois acompanhado o seu depoimento com uma imagem a negro. Ljubomir é um homem que conhece os meandros da guerra, está de luto. E quer chocar. E quer chamar a atenção para este conflito imparável.
Homem de causas, Ljubomir já tinha, em dezembro de 2020, passado seis dias em greve de fome, com um grupo de mais seis pessoas do Movimento A Pão e Água, em frente à Assembleia da República, para chamar a atenção dos deputados, do Governo e da opinião pública, através da comunicação social, para o drama que estavam a viver os empresários da restauração, hotelaria e diversão turística.
"Sinto-me com muita fome, sinto quebras de tensão gigantes, já tivemos todos quebras emocionais, mas no fundo sinto-me cheio de força", afirmou então o cozinheiro e sócio do restaurante 100 Maneiras, que acabou conduzido por uma ambulância a um hospital de Lisboa para ser examinado.
Foi então que o 'chef' recordou as dores de um conflito armado que vivenciou na primeira pessoa. Ele, a mãe e a irmã, respetivamente Rosa e Natasa Stanisic. "Isto não abala ninguém. Já estive na Jugoslávia na guerra a passar muita fome e não é esta que me vai mandar abaixo", acrescentou então, junto às escadarias do Parlamento português.
Aquele cenário de privação de dezembro de 2020 não era, de todo, desconhecido para Ljubo. O 'chef' que se tornou famoso pela sua dureza e palavreado afiado em programas de televisão da RTP, TVI e agora SIC, já viveu, quando tinha 13 anos e teve que pegar em armas para se defender e à família, a dura realidade da guerra da Bósnia.
ELE FOI O "RAPAZ BATATA" NA GUERRA
É verdade, Ljubomir chegou mesmo a participar na guerra quando tinha apenas 13 para 14 anos. E recorda-se bem de ter passado fome: "Chamam-me o rapaz batata porque durante ano e meio só comi batata, não havia mais nada".
Vinte e muitos anos depois, desafiado pela atual mulher, a jornalista Mónica Franco, Ljubomir Stanisic conseguiu sair da sua zona de conforto, de quietude e voltou a Sarajevo, a cidade mártir onde tudo aconteceu.
Ali, e nos arredores da cidade reerguida, ambos gravaram parte do documentário 'Coração na Boca', filmando em locais onde o cozinheiro foi obrigado a fazer a prova de fogo da sua vida e exorcizar todos os seus medos e ansiedades. Toda a sua adolescência marcada pelo manuseamento de armas, por tiros para se defender e aos seus, por sangue e confrontos de batalhas, veio ao de cima.
Ljubomir nunca mais tinha voltado a Sarajevo desde os tempos do conflito. Nesta viagem sentiu na pele a ansiedade do retorno. Deixou de dormir. Estava ansioso. Nas ruas da atual capital da Bósnia, foi recebido como um herói, como um compatriota de sucesso e isso apaziguou-lhe o espírito. Quem o conta é Mónica, numa entrevista recente à 'The Mag'.
O durão da televisão mostrou-se, como a mulher Mónica revelou, "frágil" e sem conseguir "conter as lágrimas". Ali recordou os cantos marcados pelas balas e os mortos que viu.
"É curioso que ele não se lembrava de quase nada. Inconscientemente, é como se tivesse apagado tudo da memória. Conforme íamos andando e visitando certos lugares, ele foi-se relembrando. E aí sim, teve momentos muito dramáticos, mas outros também muito bonitos. Foi agonizante. Há traumas que estão dentro dele e que vão ficar para sempre. É impossível esquecer o sentimento de uma criança de 13 anos ter que pegar em armas e enfrentar uma guerra", revela a mulher do 'chef'.
HÁ GUERRAS MENOS DURAS...
Recorde-se que, nos ecrãs da televisão portuguesa, Ljubomir Stanisic está a combater numa "guerra fofinha", comparada com a aquele que teve de viver na antiga Jugoslávia: a das audiências. E nessa guerra, desde janeiro, ao contrário do que era habitual, o cozinheiro está a perder, por ter armamento desigual, e ultrapassado.
Enquanto ele combate nas noites de domingo da SIC com a segunda temporada de um enlatado gravado há 9 meses, 'Hell's Kitchen', no canal rival, a TVI de Cristina Ferreira, luta com um 'Big Brother Famosos' cheio de polémicas que geram uma tempestade perfeita nas redes sociais, a fogueira de ódios e amores. E, até ao momento, não há tiro, seja de espingarda, de morteiro ou canhão que o salve. Pode ser uma guerra perdida, talvez a segunda na vida do jugoslavo.