Ricardo Salgado e José Maria Ricciardi: inveja, guerra e poder! A história da guerra dos primos, criados como irmãos, que partiu a família ao meio
Testemunha fulcral no caso BES, o primo de Ricardo Salgado foi esta quinta-feira ouvido no âmbito do processo e trouxe a lume todas as guerras que dividiram a família e que fazem que, entre os Espírito Santo, Ricciardi seja visto como grande traidor. Dos tempos em que partilhavam um berço de ouro em Cascais, às desavenças e cobiça pelo poder. Como tudo se desmoronou.
José Maria Ricciardi foi a testemunha ouvida nesta quinta-feira, dia 17 de outubro, no âmbito do caso BES e abriu, ainda mais, uma ferida que estará sempre por cicatrizar no seio da família Espírito Santo. "Tomou-me de ponta", disse sobre o primo, Ricardo Salgado, no terceiro dia do julgamento, para se referir ao momento em que tiveram início os desentendimentos com o banqueiro, precisamente quando tudo se começou a desmoronar, em 2012.
"Na primeira vez que cheguei ao Conselho Superior, estavam já quase todos os membros e o meu pai, que era o presidente, informou que o Conselho não podia começar porque Ricardo Salgado não estava. Causou-me espanto, porque ele era um vogal como qualquer outro, mas tivemos de ficar à espera. Foi o começo de um certo desentendimento com Ricardo Salgado", contou perante a juíza.
"Em vez de começarmos a discutir assuntos, Ricardo Salgado começou a debitar o que tinha sido feito e o que se ia fazer, tanto no setor financeiro, como não financeiro. E eu levantei o braço e perguntei se era para discutirmos os assuntos ou se era para ouvir Ricardo Salgado dizer o que íamos fazer… a partir daí começou a tomar-me de ponta, porque viu que eu não estava disposto a fazer a mesma figura dos outros no Conselho Superior do grupo", frisou, acrescentando que o primo "fazia tudo o que lhe apetecia", enquanto o Governador do Banco de Portugal "assobiava para o lado".
Era o início de uma guerra que iria dividir toda a família. Ao mesmo tempo que o BES afundava, José Maria Ricciardi era visto pelos Espírito Santo como o grande traidor do clã, o homem que não tinha pudor em puxar o tapete ao primo, submetê-lo às maiores humilhações públicas nas múltiplas entrevistas que dava sobre o assunto, de se tornar numa das principais testemunhas de um processo que ia arrastar o nome da família na lama. "Quando falava com ele (Ricardo Salgado) apercebi-me de algumas coisas. Mas nunca nada disto. [...] Não me parecia possível que uma pessoa roubasse a sua própria família. Mas depois, com o tempo que foi passando, deixei de ter qualquer espécie de dúvida sobre isso", já disse ao 'Observador' sobre Ricardo Salgado.
CRIADOS COMO IRMÃOS EM CASCAIS
Mas para entender a guerra dos dois e perceber porque é que gerou tanta mágoa na família é preciso recuarmos muitos anos na história, até aos tempos em que Ricardo Salgado e José Maria Ricciardi eram apenas dois jovens abastados com a vida pela frente.
Ricciardi é filho de Vera Espírito Santo que, por sua vez, era irmã da mãe de Ricardo Salgado, Maria da Conceição Espírito Santo. As duas famílias gozavam de um status quo acima da média, pelo que os primos foram criados em berço de ouro, lado a lado, em Cascais. Foi o próprio banqueiro quem o detalharia, numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, em que explicava como era a dinâmica na família, numa altura em que os donos das grandes fortunas não punham os filhos na escola, aprendia-se em casa, e havia empregadas para quase tudo. "Tínhamos o que se chamava – nome pomposo – uma mademoiselle. Uma senhora francesa que era uma espécie de precetora. Cuidava de nós. Havia muitas precetoras e empregadas [que se ocupavam de tudo]. Isso fazia com que os pais tivessem uma vida menos direta, menos cúmplice do que aquela que temos hoje com os nossos filhos", explicou José Maria Ricciardi, muito antes de o império da família se ter desmoronado.
Os tempos eram outros e Ricciardi conta que a relação com a mãe sempre foi de alguma tensão, o que acabaria por levar a um acontecimento determinante para a família: a dada altura, durante um desentendimento com a progenitora, o banqueiro sai de casa e procura guarida na mansão da tia, mãe de Salgado, que o recebe de braços abertos. Passa, então, a dividir casa com o primo numa estreita relação que se estenderia por anos.
"Tive choques grandes com a minha mãe. De tal maneira que fui morar para casa da minha tia, mãe do Ricardo Salgado. Sou quase irmão deles, mais do que primo: vivi lá alguns anos. Ela foi a minha segunda mãe. Entre os sete, 12 anos. Depois voltei. A minha mãe, apesar de gostar de mim, fez sempre algumas diferenças entre mim e os meus irmãos", fez saber na mesma entrevista, em que revelaria que todos, na família, acabariam por traçar percursos semelhantes, estudando Economia ou Gestão para dar continuidade ao império familiar na área da banca.
Mas enquanto Ricardo Salgado cedo se destaca pela pose altiva, pelo auto-controle, pelo rigor, pelo carisma e liderança, Ricciardi é intempestivo, apaixonado por futebol e pelo Sporting, explode nos jogos, tem uma postura menos ortodoxa que, por vezes é olhada de lado, vista com um handicap para quem pretende seguir a vida de banqueiro, onde a diplomacia é ponto de honra. E é uma década mais novo do que o primo que, naturalmente, acaba por lhe ganhar vantagem na liderança do banco da família.
Muitos dizem que Ricciardi sempre sonhou com o lugar de Salgado, que via na posição do primo tudo o que queria alcançar e nunca conseguiu, ele sempre negou as ambições.
"A presidência do meu primo é absolutamente merecida. Ele é que liderou toda a reconstrução, não fui eu. Está onde está por mérito: ninguém lhe deu o lugar. E essa visão da minha família, que ficou revoltada e persegue: não temos essas características (pelo menos hoje)", disse, antes da queda do BES, acabando, no entanto por denunciar, que já havia indícios de uma guerra surda entre as famílias.
Anos mais tarde, quando confrontado se, afinal, não teria levado a cabo estas denúncias por alguma inveja ou sede de vingança, com o desejo de um trono que não lhe pertencia, voltou a negar categoricamente.
"Isso não é verdade. Não estava ninguém na calha para suceder ao Dr. Salgado porque ele gostaria de ficar no lugar até morrer. Nunca há sucessores na calha de pessoas com o perfil do Dr. Salgado. Na altura, tentou-se confundir as duas coisas. Disse-se que eu estava numa mera luta de poder e que a única coisa que pretendia era substituir e ter o poder de outra pessoa. É absolutamente falso."
FAMÍLIA VIRA COSTAS A RICCIARDI
Quando o BES colapsa, José Maria Ricciardi torna-se numa figura central na denúncia da falsificação das contas e do famoso saco azul (criado para remunerar os líderes da família Espírito Santo e financiado através de clientes do BES. Só em 2013, 200 milhões de euros, que deviam ter sido usados para amortizar dívida do GES, foram para lá desviados).
Na altura, a mãe de Ricciardi, tia de Salgado, já não era viva e o banqueiro contou com o apoio do pai da denúncia do escândalo de corrupção. António Ricciardi, que morreu em 2022, foi, aliás a primeira voz a ser ouvida entre as testemunhas do caso BES, com o depoimento gravado no DCIAP em 2015 a ser reproduzido em tribubnal.
A cisão na família começaria, porém, um ou dois anos antes, quando Ricciardi alerta o clã para aquilo que se está a passar no BES e propõe uma mudança de rumo, sem sucesso.
"Comecei em 2012 e 2013 a tentar convencê-los (família) a alterar a governance. Não fui acompanhado no quadro institucional por qualquer membro dos órgãos sociais, nem no âmbito familiar por um único membro da família. Fiquei isolado, até hoje. As pessoas da minha família decidiram pôr os interesses à frente dos valores. O afastamento do Dr. Salgado poderia pôr em causa todo o status quo. Tudo poderia desmoronar-se. A família Espírito Santo estava habituada a viver numa zona de conforto e infelizmente ainda hoje não compreendeu que, para além das mordomias facultadas pelo Dr. Salgado, deveriam prevalecer os valores da seriedade, da retidão e da integridade", disse em entrevista ao 'Sol' em 2015.
"Figuei isolado, até hoje. As pessoas da minha família decidiram pôr os interesses à frente dos valores. O afastamento do Dr. Salgado poderia pôr em causa todo o status quo"
José Maria Ricciardi, Sol
A par do escândalo público, a denúncia dos Ricciardi representou uma traição e o corte foi total e abrupto. Nunca mais as duas famílias iriam estar lado a lado no mesmo espaço, acabaram-se os Natais em conjunto, as férias luxuosas na Comporta, a mais pequena ligação.
"A relação é quase inexistente, para não dizer zero, para minha grande mágoa. Digo-o com amargura, mas a reação familiar neste desenlace é uma desilusão e uma grande lição de vida. Ainda hoje predomina o entendimento familiar de que a minha oposição ao Dr. Salgado foi a alavanca do desmoronamento do grupo – o que não é verdade. Estando ou não lá, desmoronar-se-ia exatamente da mesma maneira. A minha família acha que, se eu não tivesse feito o que fiz, passávamos entre os pingos da chuva, a assobiar para o lado. Continuávamos numa zona de conforto, usufruindo de um conjunto de privilégios que não merecíamos, prejudicando terceiros. Mas quanto mais tempo passasse, maior seria o número de investidores e clientes lesados. Isso é um grande choque para mim", disse na mesma entrevista ao 'Sol', adiantando ser visto nos Espírito Santo "como um traidor".
Hoje, Ricciardi admite ser impossível voltar a ter uma relação familiar com aquele que em tempos considerou um irmão, o clã para sempre dividido ao meio, numa guerra que pôs fim a várias gerações de um império que parecia indestrutível, mas do qual já pouco resta, a não ser tudo o que há por resolver e que está agora a ser analisado pelo Tribunal, onde serão julgados 18 arguidos, mais de 300 crimes e ouvidas perto de 700 testemunhas. Com a certeza de que ainda estamos muito no início...