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Ricardo Salgado: demência, estratégia ou exagero? O que atestam os peritos e como o ex-banqueiro surpreendeu pela fragilidade em tribunal

A Defesa tentou evitar o que aconteceu esta terça-feira em Tribunal, mas o coletivo de juízes negou as suas pretensões. Ricardo Salgado foi obrigado a marcar presença no arranque do caso BES, mas a sua aparência débil gerou surpresa. De passinhos hesitantes, e ar confuso, foi puxado pela mão da mulher, que abriu caminho entre dezenas de jornalistas e operadores de imagem, até à entrada do tribunal, enquanto o ex-banqueiro olhava à sua volta, como se não soubesse bem o que estava ali a acontecer. Para o seu advogado tratou-se "de uma vergonha mundial" para os lesados "estratégia", teatro", uma igual "vergonha", mas vista de outra forma. No meio disto tudo, os peritos levantam questões sobre o real estado do antigo 'Dono Disto Tudo'. Entre o deve o haver, em que ficamos?
Rute Lourenço
Rute Lourenço
15 de outubro de 2024 às 20:05
Ricardo Salgado
Ricardo Salgado Foto: André Kosters/lusa

O olhar perdido, por vezes meio apatetado, pouco faz lembrar o Ricardo Salgado altivo, seguro e confiante, que durante mais de 20 anos liderou o Banco Espírito Santo com mão de ferro. Quase que parecem, na verdade, duas pessoas diferentes. Apesar do pedido da Defesa, sustentado pela doença de Alzheimer, o Tribunal ordenou que o principal arguido do caso BES marcasse presença, esta terça-feira, no Campus da Justiça, em Lisboa, para o início do julgamento, em que está acusado de mais de 60 crimes. E o momento em que o banqueiro chegou, pelas 9h30, pela mão da mulher, Maria João Salgado, gerou múltiplas reações, mas dificilmente deixou alguém indiferente.

Os passos de Salgado, rodeado por um batalhão de jornalistas, eram arrastados, pequeninos, hesitantes, e olhava à sua volta com um ar surpreendido, de quem está a ver tudo pela primeira vez. A cada degrau um aviso da mulher, 'cuidado', um empurrãozinho para conseguir subir. E nem as abordagens dos lesados, indignados, a exigir o seu dinheiro de volta, pareciam conseguir penetrar na bolha que separava o antigo banqueiro, hoje com 80 anos, da realidade. 

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Debilitado, ex-banqueiro Ricardo Salgado é confrontado à entrada do tribunal por lesados do BES e ânimos exaltam-se

A figura também evidenciava pela sua súbita pequenez. Ricardo Salgado, com um dos olhos negros, com sangue pisado na zona das olheiras, surpreendia pela magreza, pelo ar frágil, a confusão estampada no rosto, como se não soubesse bem o que estava ali a fazer. A última aparição pública tinha sido em fevereiro deste ano, no julgamento do caso EDP, mas de lá para cá a doença de Alzheimer, já atestada pelas entidades competentes, parece ter continuado a progredir, pois, a olho desarmado, há uma degradação do seu estado físico.

"Uma vez que a imagem do meu cliente foi tão devassada ao longo destes 10 anos, seria bom que vissem... uma imagem vale mais do que mil palavras", disse na altura do último julgamento o advogado de Salgado, Francisco Proença de Carvalho, para justificar o seu estado debilitado, garantindo que nem o antigo banqueiro "nem a família dele têm vergonha alguma do estado em que ele está. É um ser humano, como sempre foi".

Ricardo Salgado e a mulher, Maria João
Ricardo Salgado e a mulher, Maria João

Dessa vez, porém, Ricardo Salgado não seria confrontado, como agora, por uma verdadeira multidão em fúria. Na estrada contígua ao Campus da Justiça, um carro fúnebre seguia a sua marcha. Atrás, a título simbólico, dezenas de homens e mulheres encapuçados, vestidos de preto, caminhavam com coroas de flores na mão e nas camisolas escrito o nome dos lesados do BES que já morreram sem que fosse feita Justiça.

"São vítimas que perderam as poupanças porque acreditaram em duas entidades, a entidade do Banco Espírito Santo e a do Estado português, em que Portugal era um dos países seguros para fazer as suas poupanças, as suas aplicações, os seus depósitos. [...] E o Estado não conseguiu assegurar essa boa supervisão e o Banco Espírito Santo cometeu um dos maiores crimes da história financeira portuguesa", disse o presidente da Associação de Defesa de Clientes Bancários (ABESD), Francisco Carvalho.

Muitos perderam milhares, milhões, as poupanças de uma vida, anos a trabalhar do nascer do sol até este se pôr, fins de semana perdidos a amealhar para os filhos, e para esses pouco lhes dá que Ricardo Salgado não se lembre, porque a eles a memória não dá tréguas, recorda constantemente o que podiam ter e lhes foi 'roubado', a injustiça dos dez anos que passaram sem respostas, sem o dinheiro que é deles. Nem todos pensarão da mesma forma, é certo, houve quem se compadecesse do estado do antigo baqueiro, ainda que a maioria gritasse palavras de ordem, na fúria dos sentimentos, como "gatuno" ou "ladrão". "A demência não afeta as pernas, a minha mulher sofreu de demência, eu bem sei", atirou um dos lesados. A justificação óbvia que também eles ficaram doentes com o que lhes aconteceu...

Ricardo Salgado não reagiu, continuou a sua marcha lenta rumo à entrada do Tribunal com a mão bem firme da mulher, a sua cuidadora, a guiar-lhe o caminho, a tentar furar entre câmaras e máquinas fotográficas. "Assim a gente não consegue passar", disse Maria João a dada altura, o desespero no tom de voz, a implorar que o pesadelo acabasse. Foram tortuosos minutos até à entrada e depois outros tantos na sala de audiências que só terminaram quando a juíza, Helena Susano, deu autorização ao arguido para sair, dispensado de voltar a marcar presença. Antes, com Salgado no púlpito, perguntou-lhe o nome e ele confundiu-se no apelido da mãe, a morada, desconhecia, não se recordava. Lembrava-se de ter nascido em Cascais, mas o ano ou o dia também não tinha presente.

Saiu de forma diferente daquela que entrou, pela garagem, deixando as explicações, que não consegue dar, para o advogado, Francisco Proença de Carvalho, que usou a extensa audiência de jornalistas para deixar expressa a sua indignação por um homem doente, debilitado ter sido exposto a esta situação. "Uma vergonha mundial. Talvez na Rússia seja uma coisa apreciada", afirmou, adiantando  ter sido escrita "uma página negra na Justiça portuguesa, diante de todo o mundo". Ricardo Salgado não voltará a Tribunal, com os crimes a serem julgados na sua ausência.

Ao longo de todo o dia, o caso foi tema de conversa. Não o caso BES, propriamente dito, porque tudo foi personalizado em Salgado, os outros 17 arguidos a, perante a opinião pública, passarem praticamente entre os pingos da chuva. 

No, por vezes, perigoso debate que decorria em paralelo nas redes sociais, a Defesa era acusada de ter "montado um espetáculo" para ludibriar, distrair dos factos apontados pelo Ministério Público que afirmou que um Ricardo Salgado "autocrático, logrou apropriar-se do património de terceiros", sustentando que "tais propósitos foram conseguidos desde 2008 com condutas (…) a fim de iludir clientes e investidores".

Outros garantem que é puro número de teatro e que Salgado só poderá ser um magnífico ator, mas a verdade é que a doença já foi atestadas por entidades idóneas, como o Instituto de Medicina Legal, tendo sido também sujeito a perícia neurológica, que avalia parâmetros como a "memória, atenção, capacidade de concentração, raciocínio abstrato".

O Alzheimer está, portanto, confirmado, ainda que não se consiga determinar ao certo qual a extensão da doença, nem até que ponto esta será, ou não, exacerbada pela conveniência da situação. Por exemplo, no julgamento do Caso EDP este foi um assunto que esteve em cima da mesa, com o perito do Instituto de Medicina Legal Joaquim Cerejeira a levantar algumas questões sobre as respostas evasivas dadas por Salgado ao longo da conversa que mantiveram.

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Emocionada, mulher de Ricardo Salgado conta drama do Alzheimer : 'É um filho de que estou a tratar. Sou a cuidadora dele'

"Normalmente, um doente com Alzheimer não diz não sei. Não é típico de um doente de Alzheimer. Quando diz 'não sei' ou 'não me lembro' é indicador de baixo esforço. Um doente com depressão desiste mais facilmente de responder, o doente com Alzheimer responde errado, mas esforça-se por responder. É o padrão que vem nos livros de psiquiatria", disse, justificando que Salgado usou por várias vezes a escusa do "não me lembro" para contornar as questões que lhe eram feitas.

O psiquiatra apontou ainda que os testes periciais apuraram que Salgado "não tem défices muito graves" na função cognitiva e que, por isso, seria capaz de entender perguntas mais complexas, sendo que a principal dificuldade de memória que apresenta é a curto prazo.

Também a perita Maria Isabel Santana, ouvida no decorrer do mesmo processo, referiu que "na perícia, havia algum esforço insuficiente ou menor esforço em relação a memórias antigas, como filhos, mas recordava-se perfeitamente do livro que estava a ler". "Isso não é típico da doença de Alzheimer. Significa que pode haver um padrão insuficiente", explicou.

Como nem a medicina consegue ser, por vezes, uma ciência exata chegamos a uma altura em que não há uma resposta óbvia para as perguntas que continuam a ser feitas. Deveria Ricardo Salgado ter sido forçado a enfrentar os seus lesados se padece de Alzheimer e não tem capacidade de distinguir o que se passa dentro da sua cabeça da realidade? Poderá, eventualmente, cumprir pena se o seu diagnóstico é o de uma pessoa demente? Onde fica a fronteira entre a Justiça, os Direitos Humanos e os direitos de quem tudo perdeu? E como se cobra, afinal, a fatura dos 8,3 mil milhões de euros?

Passaram dez anos desde que o BES colapsou, Ricardo Salgado perdeu o trono e milhares de portugueses o que julgavam seu por conquista, mas as respostas ainda tardarão a chegar.

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