
Foi no final da década de 1970, cerca de 40 anos após a morte de Fernando Pessoa, que Ophelia Queiroz - aquela que até então se acreditava ter sido o único amor da vida do poeta - decidiu tornar públicas 48 cartas de amor que este lhe escrevera nos dois períodos em que namoraram (primeiro entre maio e novembro de 1920 e depois entre setembro de 1929 e janeiro de 1930). Nelas era tratada por "Ophelinha", um diminuitivo que se justificava também pela diferença de idade de 13 anos entre ambos (Ophelia tinha 19 anos e Pessoa 32 quando se conheceram num escritório comercial em Lisboa, ela trabalhando como dactilógrafa e ele exercendo serviços como tradutor de correspondência comercial).
Por Ophelia, Pessoa viveu perdido de amores. Tratava-a por "meu bebé travesso" para "mordiscar" e chegou a escrever: "Se casar não casarei senão consigo" (tal, no entanto, nunca viria a acontecer). Mas o início da relação entre os dois até nem terá sido fácil. Na primeira carta que o escritor escreveu a Ophelia, a 1 de Março de 1920, quando ainda não namoravam oficialmente, Pessoa até desabafava sobre algum desprezo que recebia da jovem que estaria enamorada por um outro homem. "Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito, como lhe posso eu levar isso a mal? A Ophelinha pode preferir quem quiser: não tem obrigação - creio eu - de amar-me, nem, realmente necessidade (a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama".
Como ainda hoje pouco se sabe sobre a vida sentimental e amorosa de Fernando Pessoa, as ‘Cartas de Amor’ a Ophelia, publicadas em 1978 em formato de livro, sempre foram consideradas de extrema importância para a compreensão do lado mais íntimo e privado do poeta (alguns biógrafos chegaram, no entanto, lembre-se, a caracterizá-lo como um homossexual reprimido, algo que terá irritado Ophelia que, por essa razão, decidiu finalmente, aos 86 anos, que estava na altura divulgar as cartas que Pessoa lhe escrevera). Ophelia ainda hoje é a única namorada conhecida e assumida pelo poeta, mas eis que uma nova edição das ‘Cartas de Amor’, acabada de chegar ao mercado livreiro, vem agora expor publicamente, as cartas que Pessoa escreveu no último ano da sua vida, em 1935, surpreendentemente não dirigidas a Ophelia, mas sim a uma inglesa de seu nome Madge Anderson. Por outras palavras, Fernando Pessoa morreu sim apaixonado, não pela única namorada que se lhe conhecera, mas sim por uma outra mulher.
Dirigida por Jerónimo Pizarro, com a colaboração de Ana Guerreiro e Manuel P. Fernandes, esta nova edição revisita as originais 'Cartas de Amor', afina datas e leituras, lembra os objetos de amor trocados pelos namorados, junta poemas que acompanharam o epistolário amoroso e inclui as cartas referentes à última paixão de Pessoa, então Madge Anderson. A inglesa, era irmã de Eileen, que por sua vez era a cunhada de Pessoa, casada com o meio-irmão do escritor, João Maria Nogueira Rosa. Sabe-se que entre os anos de 1929 e 1935 Madge terá feito um número indeterminado de viagens a Portugal, já então em 'férias' daquele que era o seu marido à data e em vias de se divorciar. Ora, este período apanha precisamente a segunda fase do namoro de Fernando Pessoa e Ofhelia. Esta chegou a manifestar o seu ciúme, até porque, embora contra sua vontade, Pessoa e Madge encontraram-se em algumas ocasiões.
A paixão de Fernando Pessoa pela "loura inglesa" a que vários estudiosos chegaram a chamar, durante muito tempo, de "mulher misteriosa" (foi nos anos 80 que um ensaísta espanhol de nome Angel Crespo levantou, pela primeira vez, a tese de uma segunda mulher na vida de Pessoa) nunca chegou, no entanto, a ser concretizada. A troca de correspondência entre os dois até denota afeto, com Madge a dirigir-se a Pessoa com um 'Fernando My Dear' (numa das cartas chegou a pedir-lhe: "escreve-me outro poema"), mas a paixão foi inconsequente.
QUEM ERA A INGLESA CASADA?
Nascida a 7 de setembro de 1904, em Cathcart, nos subúrbios de Glasgow, no seio de uma família conservadora com origens irlando-escocesas, Madge formou-se na University of St. Andrews, na Escócia, e começou a trabalhar no Foreign Office, em Londres (uma espécie de Ministério dos Negócios Estrangeiros). Acredita-se que a troca de correspondência com Fernando Pessoa tenha começado no verão de 1935, isto depois de uma fase depressiva do poeta, em que este a terá mesmo ignorado e desaparecido, durante uma visita sua a Lisboa. Este facto até motivou uma carta de Fernando Pessoa a justificar-se: "Esta minha carta será simplesmente um pedido de desculpas. Chegaste aqui quando eu estava a afundar-me e por cá ficaste até eu me ter afundado (...) Lamento muito tudo o que se passou, isto é, a minha descortesia em ter desaparecido, mas não perdeste nada com o meu desaparecimento," escreveu.
Acredita-se que foi a pensar em Madge, que Fernando Pessoa escreveu, a 22 de novembro de 1935 (oito dias antes de morrer), o seu último poema, um texto em inglês intitulado 'The happy sun is shinning' ("O sol feliz brilha"). Nele escreveu: "O meu pobre coração anseia/por algo que está longe/anseia só por ti/Anseia pelo teu beijo".
Depois da morte de Fernando Pessoa, Madge Anderson viria a casar com Frederick William Winterbotham, oficial da Força Aérea, e alocada aos serviços secretos britânicos. Em 1939 entra para a sede do MI6/SIS, ao serviço de uma entidade que tinha como função a criptografia das comunicações britânicas e análise daquelas que eram interceptadas. No decorrer da II Guerra Mundial, trabalhou na descodificação de mensagens alemãs. Madge viria a morrer em 1988, aos 83 anos, semanas depois do centenário do nascimento de Fernando Pessoa.