
Maria de Lourdes Modesto nasceu há 92 anos em Beja, no Alentejo. Nunca gostou muito da vida de província e por isso cedo trocou a planície e a austeridade alentejana pela cosmopolita Lisboa. Veio estudar para a capital quando adolescente, tirar o curso de Educadora de Economia Doméstica. Nesta altura sonhava "ser artista". Acabou por dar aulas no Liceu Francês, um "trampolim" para a televisão e para aquilo que viria a tornar-se a sua vida. Em 1958, a RTP foi fazer uma reportagem ao Liceu Francês sobre uma peça de Molière que estava em cena, em que participava uma professora de trabalhos manuais daquela escola. Logo aí se deu o convite.
Tinha um jeito de menina, um sorriso desarmante uma singularidade muito própria. O seu dom para a comunicação, transformou-a numa estrela televisiva. O impiedoso crítico Mário Castrim escreveria na altura: "Finalmente alguém que sabe falar em televisão." Era a "rapariga nova a fazer cozinhados em televisão", como recordou a própria em entrevista a Anabela Mota Ribeiro, há uns anos. Tinha uma figura pouco habitual no meio televisivo da época. Havia quem a comparasse a Audrey Hepburn. Mas se a televisão lhe trouxe a notoriedade também haveria de lhe mostrar o outro lado do espelho, com uma depressão. "Comecei a achar que o que fazia não interessava nada a ninguém", referiu na mesma entrevista.
Mulher culta, autora da obra 'Cozinha Tradicional Portuguesa', conhecia como poucos os segredos das várias gastronomias do País. Curiosamente, sabia muito pouco de cozinha, quase nada, antes de iniciar a aventura televisiva. "A minha mãe não nos preparou para a casa", justificou. Leu muito – "bons livros" de culinária –, estudou, fez cursos em França e dedicou-se à cozinha de forma resiliente. Só quando percebeu que "sabia mais do que os outros" é que ganhou verdadeiro prazer a cozinhar.
Só quando percebeu que "sabia mais do que os outros" é que ganhou verdadeiro prazer a cozinhar.
Tornou-se numa referência respeitada, admirada e acarinhada até ao último dia. Maria de Lourdes Modesto partiu na terça-feira, 19 de julho, aos 92 anos de idade. Ficará para sempre conhecida como "A Diva da gastromia portuguesa", a quem Miguel Esteves Cardoso apelidou de "uma das três grandes génios nascidas no século XX" e José Quitério chamou de "Guardiã do Fogo".
Maria de Lourdes Modesto foi fonte de inspiração a muitos dos chefes de sucesso da atualidade. Os grandes nomes da nossa restauração não esquecem a mulher nem a herança que ficou para as próximas gerações. "Para além de um ser humano excecional foi uma figura ímpar e incontornável na gastronomia portuguesa e o seu legado manter-se-á bem vivo, tantos foram os bons momentos que nos proporcionou", homenageou Vítor Sobral.
"Maria de Lourdes Modesto foi uma figura incontornável do nosso País. Foi ela que deu os primeiros programas de culinária de televisão. Foi com ela que aprendi os primeiros pratos da cozinha portuguesa. Fez livros emblemáticos que ficarão para sempre na história da nossa gastronomia. Será para sempre por mim admirada pelo seu talento e pela amiga que foi", testemunhou Justa Nobre.
"Há pessoas que julgamos que vão durar para sempre. Como se o tempo não passasse por elas. A Maria de Lurdes Modesto é uma delas. Encantadora e atenciosa. Tive a sorte de ser ela a apresentar um dos meus livros. Não nos conhecíamos, e depois disso encontramo-nos menos vezes do que eu gostaria, mas lembrarei sempre o brilho dos seus olhos a falar sobre uma das coisas de que mais gostava: a culinária e essa coisa tão bonita que é sentarmo-nos à mesa com alguém", referiu Kiko Martins. Também Noélia Jerónimo deixou uma singela homenagem. "Fica a gratidão para a minha vida", na recordação do galardão que ganhou em 2017, Prémio Cozinha Tradicional Portuguesa Maria de Lourdes Modesto.
Maria de Lourdes Modesto inspirou muitos destes nomes pela forma como viveu a cozinha mas, acima de tudo, como construiu a sua vida. Nesta edição especial de aniversário, a The Mag quis juntar-se na homenagem à "Diva" que agora parte. Pegamos na série de reportagens vídeo 'Sim, Chef', que fazem a História da The Mag ao longo deste primeiro ano de vida, e juntamo-nos a esta onda de celebração pela mulher que foi Maria de Lourdes Modesto, porque os grandes não desaparecem, antes tornam-se eternos na nossa memória coletiva. Deixemos-nos pois inspirar pelos chefs de cozinha, nomes de referência da nossa gastronomia, que nos deram a honra de partilhar algumas das suas receitas e das suas histórias.
CHEF JUSTA NOBRE
Justa Nobre é rainha nos chefs na categoria "anos a aprender, a experimentar e a criar mais e melhor para chegar aqui". Não é das que procura a estrela Michelin. É das que procura agradar aos clientes, torná-los felizes. E, já agora, surpreendê-nos sempre. Sim, porque cozinha é como um casamento: a monotonia mata. E Justa já está com José Nobre há muitos, por isso...
Juntos criaram O Nobre - primeiro na Ajuda, depois no Parque das Nações, na época em que era conhecido por Expo, finalmente no Campo Pequeno, sempre em Lisboa. Receberam e recebem no seu espaço todo o tipo de clientes: desde os políticos - como os Presidentes da República, Mário Soares e Marcelo Rebelo de Sousa, que deram nome à casa, a empresários, toureiros, famílias, amigos. "Este é o tipo de restaurante que não é de negócios. Podem vir cá almoçar em trabalho, mas depois voltam ao jantar ou ao domingo com a família". O segredo? "Amor no que se faz", sorri Justa, no meio sua equipa de muitos e muitos anos, na cozinha do Nobre, onde nos leva.
É lá que prepara uns filetes de peixe galo com puré de ervilha, uns rissóis de pescada de comer e chorar por mais, aquela sopa de santola que se tornou um clássico, e os pratos do dia, de acordo com o que há no mercado.
CHEF VÍTOR SOBRAL
Vítor Sobral leva quase 35 anos de profissão. Diz-se "o primeiro alentejano a nascer fora do Alentejo". A família é natural de Melides. Quando se mudou para o Seixal fez questão de manter a ligação à terra e aos produtos alentejanos, oriundos da herdade que mantiveram na região. Aos 18 anos anos entrou na Escola de Hotelaria do Estoril, depois de não ter conseguido acesso à de Lisboa. "Não tinha cunha", costuma dizer.
Uma parte importante da sua vida que faz como cozinheiro vem da formação em França. A carreira culinária começou-a no Iate Ben, em Cascais, passou pelo Alcântara Café, pelo Café Café, Cervejaria Lusitana, Clube de Golfe da Bela Vista e restaurante Terreiro do Paço. Recebeu vários prémios, como a comenda da Ordem do Infante D. Henrique, pelas mão do então Presidente da República Jorge Sampaio, pelo trabalho de divulgação e promoção que fez de Portugal. A passagem pelo Alcântara Café deu-lhe mundo e a oportunidade de ver a cozinha fora de Portugal, quando começa a viajar.
O principal ingrediente de Vítor Sobral na cozinha é "manter as raízes o mais genuínas possível". Isso valeu-lhe, primeiro, o prémio de Melhor Restaurante Português de São Paulo e, depois, do Brasil, com a Tasca da Esquina. "Mantive a raiz lusitana o mais genuína possível que eu consegui e isso teve retorno. As minhas raízes, as minhas influências e a minha matriz de paladar é a portuguesa."
E daqui parte uma das posições mais polémicas do chef do Tasca da Esquina e do Otro, com ataques frequentes ao prestigiado Guia Michelin: "Os inspetores do Guia Michelin não têm condições de julgar os cozinheiros portugueses nem a cozinha portuguesa porque eles não conhecem."
CHEF KIKO MARTINS
Kiko Martins nasceu no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro. Filho de mãe pernambucana, é o mais novo de oito irmãos – três continuam a viver do outro lado do Atlântico. Influências que lhe apuraram a personalidade. "Não só no desenvolvimento do paladar, como no meu historial. Há um lado daquela ginga e daquela alegria brasileiras, o lado de ter crescido com sabores mais tropicais, como a manga, o coco, o açaí, tudo isso influenciou e muito."
Chegou a Portugal apenas com 10 anos de idade. O lado de empreendedor ganhou-o ainda criança, quando fazia bolos para vender. Abriu o primeiro restaurante com 25 anos, o Masstige, na Av. 5 de Outubro. Mas não iniciou pela cozinha. Kiko Martins começou em Gestão de Marketing. "Só mais tarde ingressei neste mundo". Foi há cerca de 20 anos. Depois de um estágio na Estufa Fria, tirou um curso de cozinha no Cordon Bleu, em Paris, cidade onde ficou a trabalhar durante algum tempo em restaurantes com estrelas Michelin.
De regresso a Lisboa, ainda trabalhou no Eleven antes de abrir o Masstige, em 2004/2005. Mas a mudança maior deu-se um ano e meio depois, com as viagens – mas primeiro ainda haveria de ir para Moçambique, fazer voluntariado. "Conheci a mulher da minha vida, a minha atual mulher e mãe dos meus filhos. Casei-me e fui dar uma volta ao mundo." Ao todo foram 26 países. A viagem acabou por originar a ideia para montar a empresa Comer Mundo, mãe dos vários restaurantes que Kiko Martins tem aberto. Todos eles diversos, inspirados em diferentes países.
O Talho foi o primeiro a ser inaugurado sob este conceito, há pouco mais de 10 anos.
CHEF NOÉLIA JERÓNIMO
No Algarve, em Cabanas de Tavira, mesmo a mirar a bonança da ria Formosa, só quebrada pelo vai vem dos barcos da faina, há um restaurante icástico que rivaliza em fama com tantos, estrelados pelo famoso Guia Michelin, que têm filas de espera de semanas, meses até.
E, tal como nem todos os fiéis que vão a Roma, e em especial ao Vaticano, conseguem ver o Papa, quem perpassa pela marginal deste vilarejo piscatório do sotavento algarvio, com o fito de um lugar, também nem sempre consegue vaga à mesa no restaurante Noélia & Jerónimo.
Três horas antes de começar o corrupio no passeio junto ao despretensioso restaurante, que já conquistou pergaminhos de templo da gastronomia algarvia, encontramo-nos com Noélia. Impressiona-nos pela simplicidade. Pelo sorriso franco. Sem manias.
Num piscar de olhos, veste a jaleca e dispara ordens ao staff da cozinha, em português e inglês. No meio do um balé de tachos e ingredientes para confeção, onde também se cruza o técnico de refrigeração que vem dar um arranjo numa arca de congelação, um dos colaboradores pergunta a Noélia se "as ostras vieram". A chef, sem se desmanchar, responde de rajada e bem-humorada que não: "Foram dar uma volta. Foram dar uns mergulhos na ria".
Com um dos robalos comprados no mercado de Tavira numa mão e a faca na outra, a cozinheira começa a cortar com mestria o peixe, destacando todos os sinais da sua frescura. Perguntamos-lhe se a magia que faz no fogão é resultado de muita complexidade e requinte ou se a aposta está na singeleza, sem truques na manga. "Aqui não se inventa nada. A minha aposta é na gastronomia tradicional algarvia, rica e cheia de sabores dos temperos", diz, avisando que, quem ouve estas declarações, não pense que se limita a copiar as receitas ancestrais.