
No Algarve, em Cabanas de Tavira, mesmo a mirar a bonança da ria Formosa, só quebrada pelo vai vem dos barcos da faina, há um restaurante icástico que rivaliza em fama com tantos, estrelados pelo famoso Guia Michelin, que têm filas de espera de semanas, meses até.
E, tal como nem todos os fiéis que vão a Roma, e em especial ao Vaticano, conseguem ver o Papa, quem perpassa pela marginal deste vilarejo piscatório do sotavento algarvio, com o fito de um lugar, também nem sempre consegue vaga à mesa no restaurante Noélia & Jerónimo.
E não se pense que é um mito. A FLASH! testemunhou. Há mesmo filas ordeiras de potenciais comensais em pé à espera, no passeio junto à esplanada, desta meca, de aspeto singelo, da gastronomia algarvia. Com fama e proveito! Muitos conseguem sentar-se. Outros tantos desistem.
Quem reserva tem prioridade. Sempre. Duas audazes turistas portuguesas, na casa dos 50 anos, que não tinham feito reserva, tentaram a sorte debaixo do nosso olhar. Não arredaram pé. E esperaram sentadas, mais de uma hora, num assento de tijoleira moldurado a cal branca, por uma refeição saída da mão da carismática chef Noélia. Quando a fila se cansou e duas reservas falharam, elas, pela perseverança, lograram dois postos à mesa. Cheias de sorrisos "Pepsodent".UM GENERAL NO MERCADO DE TAVIRA
Três horas antes de começar o corrupio no passeio junto ao despretensioso restaurante, que já conquistou pergaminhos de templo da gastronomia algarvia, encontramo-nos com Noélia. Impressiona-nos pela simplicidade. Pelo sorriso franco. Sem manias. Pede-nos desculpa pelo atraso. O seu carro avariou e está entregue aos especialistas da mecânica. Solicita-nos boleia até ao mercado de Tavira. Damo-la na hora. Para a vermos em ação às compras, só nos falta enfrentarmos o mistifório trânsito na Estrada Nacional 125. À ida… e à volta. Safa!
Chegámos. Noélia é baixinha e franzina, mas, nos lugares de venda, agiganta-se e parece um general de cinco estrelas. Das bancas de peixe às da fruta e legumes todos lhe dão atenção. Todos param para escutar e satisfazer os seus pedidos. A chef verifica, no meio da zoada do mercado, a qualidade do peixe que encomendou, como quem passa revista às tropas. E passam com distinção…
"Nenhum dos meus fornecedores se atreve a entregar-me peixe que não esteja em condições. Eles sabem que se não cumprirem os meus requisitos mando tudo para trás", explica Noélia, já no lugar do pendura do carro, com dois robalos frescos num saco a seus pés, de regresso a Cabanas. E estes são especiais, confessa, prometendo: "Vou cozinhá-los para vocês".
AS OSTRAS QUE FORAM PASSEAR
Por culpa da reportagem, a cozinheira está atrasada. Num piscar de olhos, veste a jaleca e dispara ordens ao staff da cozinha, em português e inglês. No meio do um balé de tachos e ingredientes para confeção, onde também se cruza o técnico de refrigeração que vem dar um arranjo numa arca de congelação, um dos colaboradores pergunta a Noélia se "as ostras vieram". A chef, sem se desmanchar, responde de rajada e bem-humorada que não: "Foram dar uma volta. Foram dar uns mergulhos na ria".
Com um dos robalos comprados no mercado de Tavira numa mão e a faca na outra, a cozinheira começa a cortar com mestria o peixe, destacando todos os sinais da sua frescura. Perguntamos-lhe se a magia que faz no fogão é resultado de muita complexidade e requinte ou se a aposta está na singeleza, sem truques na manga. "Aqui não se inventa nada. A minha aposta é na gastronomia tradicional algarvia, rica e cheia de sabores dos temperos", diz, avisando que, quem ouve estas declarações, não pense que se limita a copiar as receitas ancestrais. "Aqui não se inventa nada. A minha aposta é na gastronomia tradicional algarvia, rica e cheia de sabores dos temperos"
"Aqui não se inventa nada. A minha aposta é na gastronomia tradicional algarvia, rica e cheia de sabores dos temperos"
"Tenho em casa mais de 400 livros de culinária e estudo imenso. No verão não consigo porque, por norma, o trabalho não permite, mal dá para descansar, mas no inverno estudo receitas, faço experiências, repito de várias formas até apurá-las", revela, confessando um pormenor curioso e pouco conhecido dos comuns mortais: "No Algarve há dois tipos de gastronomia, a do litoral e a da serra. Têm pequenas diferenças, mas, juntas, são de uma riqueza fantástica. Aproveito tudo". Não duvidamos.
UM FESTIVAL GASTRONÓMICO
Então e o que não pode falhar à mesa dos clientes do restaurante Noélia & Jerónimo? - onde a chef começou a trabalhar há 36 anos, ainda era só uma pastelaria e só se chamava Jerónimo. Isto, muito antes de sonhar casar com o filho dos donos da casa e de se transformar numa das mais carismáticas cozinheiras algarvias, com nome reconhecido e apreciado por forasteiros de Norte a Sul de Portugal, e também por alguns estrangeiros - Nós contamos: um festival de gaspachos com figos, douradas grelhadas, robalos do mar fritos com migas de tomate, arrozes de limão com corvina e amêijoas, arrozes de robalo do mar com gambas do Algarve, sardinhas marinadas com maracujá, cataplanas, filetes de peixe-galo, lulas fritas e de muitas outras formas.
Ah, e tudo bem regado com uma carta com mais de 400 referências de vinhos nacionais, onde nem sequer faltam uns míticos Barca Velha. "Trabalhamos muito com os vinhos do Douro", salienta um dos colaboradores. Pois. Confirmámos! Primeiro após uma visita sem guia pela garrafeira exposta na sala. Depois após uma espreitadela, à penetra, à garrafeira nas traseiras do restaurante. "No Algarve somos uns privilegiados com toda esta riqueza que temos"
"No Algarve somos uns privilegiados com toda esta riqueza que temos"
UM TESOURO MESMO À MÃO
Na entrada da cozinha, mesmo com a sala cheia e a rodar com a lotação que a pandemia permite, Noélia está preocupada. Faz-nos sinal ao longe. Quer perguntar-nos se estamos satisfeitos com a refeição. Claro que estamos. E não nos esquecemos aquilo que a chef nos disse, horas antes, a olhar para o lado do mar: "No Algarve somos uns privilegiados com toda esta riqueza que temos. E tudo a apenas cinco milhas daqui. Já viram o peixe e o marisco que temos mesmo aqui à mão?". Não só vimos, como provámos. E aprovámos.