
"Quando eu vim para esse mundo
Eu não atinava em nada
Hoje eu sou Gabriela
Gabriela ê meus camaradas
Eu nasci assim eu cresci assim
E sou mesmo assim
Vou ser sempre assim Gabriela
Sempre Gabriela
Quem me batizou quem me nomeou
Pouco me importou é assim que eu sou
Gabriela sempre Gabriela"
Lembra-se desta canção? É do baiano Dorival Caymmi, nome maior da música popular brasileira (MPB). Corria o ano de 1977 quando começámos a ouvir esta letra que começava melancólica e ia ganhando ritmo e emoção, na voz de Gal Costa. Era o genérico de 'Gabriela', a primeira novela brasileira - e da Globo - a chegar a Portugal. Era maio, passavam 3 anos sobre a revolução, Portugal já era livre, mas não tão livre como acreditava, como nesta história de Jorge Amado que apaixonou um povo cheio de sonhos e que tentava ver-se libertar-se ainda dos espartilhos da ditadura. Faz esta segunda-feira, dia 16, (já) 45 anos.
Baseada no romance 'Gabriela Cravo e Canela' de Jorge Amado - também ele baiano e, já agora, grande amigo de Caymmi - a novela que estrear na Globo dois anos antes (abril de 75) tinha todos os ingredientes para encantar os "parentes da terrinha". 'Gabriela' não era apenas uma história de um amor livre e pouco provável, do "turco" (que era sirio) Nacib, dono do Vesúvio, o botequim mais frequentado da cidade de Ilhéus, pela sua nova cozinheira, chegada do sertão, sem eira nem beira mas linda e real, Gabriela.
"
- Que moço bonito!
Parou. Não se lembrava de ninguém achá-lo bonito à exceção da velha Zoraia, sua mãe, nos dias de infância. Foi quase um choque.
- Espere.
Voltou a examiná-la, era forte, por que não experimentá-la?
- Sabe mesmo cozinhar?
- O moço me leva e vai ver...
(...) - Como é mesmo seu nome?
- Gabriela, pra servir o senhor.
"
Gabriela era mais do que esse dengo entre patrão e cozinheira, homem feito e jovem que chegava na cidade e nem queria ouvir falar em usar sapatos. Esse amor que crescia, manso, no calor tórrido da Baía, numa cidade com cheiro a café e a especiarias, onde coronéis ditavam as regras e trabalhadores obedeciam.
Era pois, ao mesmo tempo, uma história política, que assentava como uma luva, em 1977, a este Portugal ainda perdido entre o passado de décadas de cabeça baixa e uma revolução recente, cujas sequelas ainda se sentiam.
Além do "par romântico", por quem os espetadores torciam, embora incrédulos que tal paixão pudesse resultar, havia muitas personagens nesta novela - uma adaptação muito próxima assinada por Walter George Durst do original de Jorge Amado - que encantavam quem assistia e não conseguia sair da frente do ecrã a preto e branco, noite após noite.
As amigas Malvina (a rebelde) e Gerusa (a tímida), 'Seu' Tonico Bastos, essa figura inconfundível, auto-proclamado galã, frequentador do bar do Nacib, dr. Mundinho, o grande opositor ao poderio dos coronéis - e que, evidentemente, se apaixonada pela neta do mais poderoso -, dona Sinhazinha que não resistiu aos encantos de um dr. forasteiro na cidade e acabou morta, nos braços do amante, e, claro, os coronéis, que faziam e desfaziam, mandavam e desmandavam a gosto, matavam e saíam impunes numa Ilhéus que ainda era esclavagista mas começava a rebelar-se. Ah, claro, e havia o Bataclan, com Maria Machadão, a "dona daquilo tudo" e as suas "pombinhas". O Bataclan, onde tudo acabava, tal como no bar de 'seu' Nacib.
Recordou-se de cada uma destas personagens? É bom dizer que 'Gabriela', na sua versão original, a que estreou em Portugal de maio de 1977, tinha Sónia Braga como protagonista. Anos depois, em 2012, a Globo fez um remake - e dessa, que já foi apresentada na SIC, os mais jovens já deverão ter memória. Gabriela passou a ser interpretada por Juliana Paes, que não se saiu nada mal na passagem de testemunho da inesquecível Sónia Braga.
Mas voltando atrás no tempo. O que trouxe mais esta novela, a partir de maio de 1977, a Portugal? Abriu uma nova janela: a do entretenimento made in Brasil, ou melhor, made in Globo. O publico apaixonou-se de tal forma pelo género que começou a consumir e a querer cada vez mais. Depois de 'Gabriela' chegou 'Casarão', em 1978, e depois 'Escrava Isaura', já no horário da hora de almoço - veja-se bem a revolução em termos de grelha da RTP.
E com 'O Astro' entrou-se numa nova fase, das novelas urbanas e cosmopolitas, escritas por Janete Clair, que ganhariam novo ponto alto com 'Dancing Days', de Gilberto Braga, que chegou à RTP em 1979 e pôs o país inteiro a dançar nas discotecas ao som das Frenéticas.
E depois... depois nunca mais parou. O país já estava mais do que viciado em novelas. Aliás, como o mundo. Já não via só novelas brasileiras. Também já consumia soaps americanas - 'Dallas', por exemplo, estreou também em 1979.
E as novelas da Globo ficaram. 'Baila Comigo', 'O Bem Amado', 'Guerra dos Sexos', 'Roque Santeiro', 'Sassaricando', 'Vale Tudo', 'Tieta', 'Rainha da Sucata'...
Em 1992 a SIC fecha acordo com a Globo e as novelas do "gigante" brasileiro tranferem-se da RTP para o novo canal privado. Mas a loucura continua. Quem não recorda 'Renascer', 'Mulheres de Areia', 'O Rei do Gado', 'A Próxima Vítima', 'Terra Nostra', 'Senhora do Destino', 'Celebridade', 'Avenida Brasil'...
Ficou. Mudando, adaptando-se, mas ficou.
Só que a primeira vez ninguém esquece, não é? E essa foi 'Gabriela'.