
Gosto de testar os limites,
disse-lhe ela, olhos fixos nos dele, enquanto enchia a mala, pousada em cima da cama, com roupas variadas,
Preciso de saber quanto valho sem ti,
ele sem uma palavra, a vê-la, a ouvi-la, as mãos caídas, os braços caídos, as lágrimas caídas,
Sei que vai doer não te ter mas sei que vai doer mais ainda não ter a mim,
a mala fechada, a porta já ali,
Não vás sem antes ficares,
a frase dele não teve lógica nenhuma, foi apenas uma grupo de palavras que saiu com a sequência errada, com o código errado para aquilo que ele queria comunicar, mas talvez tenha sido por isso, precisamente por isso, pela absoluta incoerência, que ela acabou por parar o seu caminho, sem entender muito bem porquê, à espera das próximas palavras que ele dissesse, como um náufrago à espera de uma boia, por favor, uma boia, por favor, uma boia por favor, umaboiaporfavor,
Sei que inevitavelmente vou deixar de ser eu quando inevitavelmente deixarmos de ser nós,
ele que nunca fora destas merdas, ele que nunca fora de dizer o que sentia, ele que nunca contou a ninguém o que sentia por esta mulher, ele que sempre pensou que bastava o que fazia, e fazia tanto, para a ver feliz, para a fazer feliz, ele que nunca colocou qualquer responsabilidade sobre o que era no outro, só em si, só no que fazia, ele, ele mesmo, este homem agora de joelhos, mesmo de joelhos, sem metáfora nenhuma, ele, ele mesmo, ajoelhado diante dela, ele mesmo é o homem que acaba de assumir com toda a certeza, como se se tratasse de uma verdade universal mesmo tratando-se apenas de uma dor universal, quem nunca amou que atire a primeira pedra e se esconda para sempre debaixo dela, já agora, que quem nunca amou mais vale estar morto por fora como já está e sempre esteve morto por dentro, este homem, ele mesmo, coloca a chave da sua felicidade, a chave de tudo o que é, nesta mulher que não sabe como agir, o que dizer, ela que estava tão certa do que ia fazer, ia soltar-se do que a prendia, às vezes a vida parece simples, basta soltarmo-nos do que nos prende,
Acabei de perceber que é em ti que estão todos os meus limites, e se não os testar contigo não estou acima do meu limite, só abaixo, e os limites mínimos não interessam para nada, não é?,
é, apeteceu respondeu, quis mesmo responder, mas quando deu por si estava a dizer mas ninguém o ouvia, feliz ou infelizmente não é possível falar de forma audível quando temos a nossa boca na boca de outra pessoa, a nossa língua na língua de outra pessoa, e não vamos desenvolver mais para não aquecermos mais, Deus nos livre,
Aperta-me para me libertares,
pediu ele, e finalmente veio a frase certa, a frase que responde a tudo o que tanto o atormentava, finalmente estava descodificado o segredo, o segredo que tanto procurara, de facto a vida às vezes parece simples, só temos de nos soltarmos do que nos prende,
Só não convém é soltarmo-nos do que nos prende, sim, mas à vida,
esta frase não disse, resolveu mostrar, já vá vão vinte anos, e parece que ela ainda não percebeu bem, ou pelo menos não quer perceber, escolha cada um a possibilidade que preferir.
Susto: s.m. Diz-se do instante em que vais e vens do fundo de ti em segundos; quem nunca se assustou nunca se encontrou.