
Todas as mudanças começam por ser mentirosas, é aliás essa a única maneira de mudar. O processo é simples: primeiro convenço-me, custe o que custar, de que realmente mudei; depois, porque estou realmente convencido de que realmente mudei, realmente acabo por mudar. Não se trata de uma mentira inocente; não se trata, também, de uma mentira culpada; trata-se apenas de crescimento. Cresce-se quando se muda, nada mais. Diz-se que só os burros é que não mudam, que burrice; só os mortos é que não mudam, e até esses, à revelia, vão mudando: quantos morreram culpados e, à medida em que morte ganhou tempo em quem não morreu, acabaram inocentes? Hoje mudei: eis uma afirmação que todos os dias faço questão de fazer. Pode ser mentirosa, mas rapidamente, depois de a fazer, passa a ser verdadeira, por mais que custe a crer.
A beleza está na densidade. O belo é uma criatura espessa, que nos envolve com o que ninguém explica. Gosto de rostos que ensinam. Quando for velho quero ter vivido muito, só isso.
Ninguém tem a vida que tem; todos têm, isso sim, a vida que pensam ter, o que raramente é a mesma coisa, e ainda bem. Coloquem-se duas pessoas a passearem juntas à mesma hora na mesma rua deserta e sem nada para ver e perceba-se imediatamente que não existem ruas iguais, como não existem vidas iguais por mais que se viva exactamente o mesmo, porquanto uma pode ficar triste porque a rua nada tem para ver e parece abandonada e morta, e a outra pode até ficar feliz por ter finalmente uma rua pacífica e silenciosa para escapar do bulício incansável da cidade. Vive-se sobretudo antes da vida – antes de a vida se cruzar connosco – e depois da vida – quando efectivamente construímos em nós o que a vida nos trouxe. É então a memória, pouco mais, que define o que vivemos. E tu, se não o sabias, não é porque não o soubeste nunca; apenas não o memorizaste. Nada de grave, portanto.
Todos se queixam das limitações, mas são elas, talvez acima de tudo o resto, que dão sabor (mais ainda: sumo; mais ainda: plasticidade) a isto tudo. A beleza, por exemplo, só ganha consistência por aquilo que a impede: por aquilo que a limita. Necessita-se, assim, de constrangimento para que a liberdade tenha paladar, como se o pássaro precisasse da terra para estar pronto para tocar o céu, e precisa. Falamos mal, particularmente, do fim. Cremos que, sem ele, este nosso meio ganharia outra valia, erro primário. Se todos fôssemos imortais esta latrina morria num piscar de olhos, dois, no máximo. Sem limitações somos tábuas rasas a boiar no mar, sem tino, sem rumo, comuns escravos das ondas e das tempestades que nos devastam. Que haja sempre uma limitação para me salvar: eis tudo o que peço, limitado como sou.
As ruas cheias e uma mulher, triste, à janela. Procura o que não sei dizer, o que talvez nem ela saiba dizer. Paro uns segundos e fico a olhá-la, como se quisesse acalmar-lhe o que lhe dói. Mas as pessoas são organismos solitários. Dói-se sempre a sós, por mais companhia que nos acompanhe. De repente, vejo-lhe um sorriso, os olhos abertos, o mundo inteiro a mudar. Um homem, de mala na mão, tocou à campainha. A mulher abriu. Talvez haja sempre um amor para nos salvar a vida. Oxalá.