
"Sou egoísta: penso pela minha cabeça."
E pensava. Foi aluno extraordinário e profissional extraordinário desde sempre. Jamais se entregou aos poderes – ele chamava-lhes "podres" e alegava sofrer de dislexia social – que o queriam amarrar. Hoje continua exactamente assim, sem vergar no que quer que seja. Continua a não ceder, continua a pensar absolutamente o que pensa e
a não se vender a quem o tenta comprar. Gosta de autointitular-se um "sem medo", por mais que todos os outros que todos os dias se cruzam com ele junto ao viaduto digam que ele é, isso sim, um "sem abrigo".
"Sou intelectual genial: uso óculos grossos."
E usava. Daqueles de massa, bem inteligentes. E camisolas densas, profundas, altamente eruditas. Por vezes é necessário que seja o que usamos a trazer intelecto a um conjunto. Para este pensador, assim era. Passava os dias a ponderar, a congeminar sobre o mundo, sobre a vida, sobre tudo o que compõe a existência humana.
Era principescamente pago para isso, através de um subsídio que o tio, secretário de estado de um ministério qualquer, havia criado para o efeito. No fim de cada dia, o sumo do seu trabalho era, sem tirar nem pôr, entregue, via e-mail, à entidade pública que o sustentava – e era, sem tirar nem pôr, sempre o mesmo: três ou quatro selfies
com novos ângulos dos seus óculos, que pareciam, a cada fotografia, mais talentosos.
"Sou crítico profissional: nunca criei nada."
E nunca. Queixava-se da falta de tempo, do próprio tempo, do país, da neblina matinal, do barulho do mar, do cheiro da comida, dos erros ortográficos, da forma de forma de falar dos adolescentes, dos novos cantores, das cuecas que apertavam, das calças que estavam largas, das tecnologias modernas, do penteado dos jogadores de futebol, da mediocridade dos políticos, da fast-food e de toda a food, na verdade. Jamais foi visto a produzir um pensamento
próprio, jamais foi ouvido a dizer uma frase surpreendente. Nunca errou na vida. Gabava-se de ter uma cabeça brilhante. E tinha, sobretudo ao sol.
"Sou genial. Mas os burros desconhecem."
E desconheciam. Talvez fosse por isso que eram burros. Calhaus autênticos. Para ele, o iluminado, era simples avaliar o QI do planeta: quem não lhe reconhecesse o esplendor inaudito era burro. Escreveu romances que ninguém leu, peças de teatro que ninguém viu. Asnos, pensava, quando percebia que ninguém o lia. E continuava, com sofreguidão, a verse reflectido no espelho.
"Agora sou rico. Posso roubar descansado."
E pode.