
(manual sobre o tempo para totós)
1. Claro que se volta onde se foi feliz; só não se volta onde se foi infeliz. Tinha-o amado ali, justamente ali, junto à entrada da escola, no murinho mesmo em frente, há mais de quarenta anos. Lembrou-se do sabor a mar rebelde do primeiro beijo, lembrou-se de pensar que nas férias grandes ia ser a pessoa mais feliz do mundo porque naquele momento estavam em si os lábios mais felizes do mundo. Recordar é uma das formas de viver, mas não é a melhor; a melhor é fazer o que vai ser recordado. Hoje, sem perceber porquê, foi ali parar, por uma qualquer distracção ou simplesmente porque tinha de ser. Amar é certamente isso: uma distracção ou simplesmente aquilo que tem de ser.
2. A melhor parte do passado é estar a ser construído agora mesmo. Até que ele chegou. Não era ele, o ele que há quatro décadas a beijara ali, mas era um ele que existia agora, no mesmo murinho, já cheio de grafites (e até um grafite de uma caveira é romântico quando se está apaixonado assim), e que sorria para ela, um sorriso que fazia lembrar a adolescência, a inconsequência, o mundo todo à frente. Amar é certamente isso: a sensação do mundo todo à frente.
3. São os que não sabem aproveitar o seu tempo que mais te levam a perderes o teu. Claro que houve críticas, claro que houve más-línguas (e são mesmo isso, línguas com mau uso; toa a gente sabe que as línguas, as faladas e as tocadas por outras línguas, existem para dar prazer, que mais?): onde é que já se viu uma velha estar apaixonada? Ela não ligou, ele não ligou, talvez ironicamente porque já fossem velhos e soubessem que o que importa é que importamos para nós, e o que importavam era a certeza de que estavam onde deviam estar, por muito que não soubessem, ao certo, onde estavam. Amar é certamente isso: a certeza de que estamos onde devemos estar, por muito que não saibamos, ao certo, onde estamos.
4. Corajoso é o que não tem medo de se dar em pleno ao que pode ser destruído. Juntaram as vidas num domingo como outro qualquer, fartos de saber que eram temporários, extraordinariamente temporários. É com regularidade o que é extraordinariamente temporário o mais extraordinário na nossa vida, quem nunca teve um orgasmo que venha cá negá-lo. A igreja estava cheia – e não era o facto de estarem apenas eles os dois e o padre que o mudava. Amar é certamente isso: uma anulação das verdades intocáveis: intocável é só o amor.
5. É, muitas das vezes, a efemeridade de um amor que o torna eterno. Ele morreu nos braços dela, como morreria mesmo que não morresse. O médico disse que foi o tempo, o já muito grande tempo de vida, que o matou; mas ela sabia que foi a falta dele. Amar é certamente isso: aquilo que só morre quando falta, nunca quando existe em excesso.
6. Trata bem dos retratos que tens nas estantes lá de casa; é isso, e só isso, que um dia vais ser. O dele, numa fotografia tirada no murinho mesmo em frente à escola, ainda lá continua, por cima da televisão dela, mais amado do que muitas pessoas.
Longe: adv. Estar a milhas do que amamos; só um amor que não existe está distante.