
Há coisas que nunca mudam. São poucas, mas são as melhores. O sabor do primeiro beijo, a paz dos abraços intemporais, as gargalhadas da nossa melhor amiga depois de dois copos de Rosé, o prazer do primeiro mergulho do ano, o corpo estendido na toalha a aquecer ao sol, o sorriso dos nossos filhos quando os vamos buscar à escola, aquele livro que nos fez chorar de emoção, uma canção de Dean Martin ou a Audrey Hepburn a cantar Moon River sentada no patamar da janela de um apartamento em Manhattan.
Há coisas que nunca mudam e ainda bem. O telefone tocou, um número que não tenho gravado na minha lista telefónica. Atendi. Era a tia Luísa, mãe do meu primeiro namorado a sério, que morreu novo, de repente, uma morte macabra cujos contornos já esqueci. Conversámos durante mais de uma hora, como se eu tivesse 16 anos e andássemos as duas nas compras. A tia Luísa não teve filhas e eu nunca casei com o filho dela, mas ao fim de todos estes anos ainda estou gravada como Nora Preferida. Foi com a tia Luísa que saboreei a minha primeira lagosta, a primeira sapateira, os camarões de Espinho e outras pérolas da gastronomia nacional. Tem 89 anos e a mesma voz, a mesma perspicácia, a mesma alegria, a mesma sabedoria, a mesma magia que me encantou quando a conheci e me comprava vestidos para eu ir sair à noite. Falámos de tudo, trocámos confidências como só fazem os verdadeiros amigos, porque nas coisas mais importantes na vida, o tempo não passa, nós é que passamos por ele.
Eu sei que o tempo não passa, porque te vejo a chegar com o cabelo sempre despenteado, o mesmo passo elástico e decidido a contrastar com a eterna expressão de miúdo que perdeu o estojo no intervalo grande. Há quantos anos não te via? Não sei, só sei que estás igual. Dizes que te sentes mais velho e cansado, passas as mãos pelos cabelos para provar que o tempo te marcou, mas eu não vejo nada daquilo que tu pensas que vês, ou que pensas que eu vejo. Sim, o teu cabelo matizou-se e então? Ficou mais bonito, porque agora faz lembrar a cor das nuvens e é perto do céu que sempre morámos. Estás igual. Estás igual porque no meu coração és o mesmo por quem perdi a cabeça, o juízo e sei lá mais o quê numa tarde de Verão quando a sorte quis que nos cruzássemos. És o mesmo que agarrou as minhas mãos num banco de jardim e que me disse coisas sérias ainda antes do nosso primeiro beijo. Sempre que passo por aquele banco lembro-me de ti, da tua voz a envolver-me em fios de paz, dos teus olhos que brilhavam no escuro e de pensar que nunca mais ia ter frio nem medo de nada, desde que estivesses ao meu lado.
Nem sei quantos Verões voaram, mas o dia em que as estações passam o seu testemunho não mudou, nem as noites dos Santos. António, o casamenteiro, o João, o mais belo e inteligente e o Pedro, o fundador da Santa Igreja. Não mudou o ritmo do meu coração de miúda endiabrada que sempre se agita antes dos teus regressos e se aquieta assim que passas a porta como o de um pássaro que enfim chega ao ninho depois de uma migração longa, solitária e perigosa. Sabias que tenho um casal de gaivotas na chaminé da minha casa nova? Vejo-as a rasar as janelas do quarto pela manhã assim que as abro. Vou ao terraço da vizinha do outro lado da rua para espiar os meus novos inquilinos de binóculos em punho. Pai, mãe e filhote, são três, a conta que Deus fez. A minha vizinha que me conhece bem e sabe que sofro com o ninho vazio debaixo do meu telhado, diz-me que já sou avó daquele passaruco que parece de peluche. Quem sabe também ele numa próxima Primavera escolhe a minha chaminé para continuar o milagre da multiplicação da vida com os seus filhotes, enquanto Deus não me manda netos diretos ou emprestados? Famílias serão sempre bem acolhidas no meu coração de mãe.
As melhores coisas não mudam, porque resistem a tudo. Sobrevivem a zangas e explosões, a exageros e omissões, a desentendimentos e desilusões, à distância, ao medo, ao silêncio. Tudo se apazigua, se releva, se esquece e se apaga. Tudo menos as saudades daqueles que vivem para sempre no nosso coração. São poucos, é verdade.
Verdade é o que se sente, por isso para a semana vou visitar a minha querida Tia Luísa que sempre me tratou como sua filha e levar-lhe uma caixa cheia de abraços e de beijos. Sei que vamos passar uma tarde inteira a trocar memórias e histórias e que vou regressar a casa com o coração ainda maior. São as pessoas que lá vivem que o fazem crescer. O coração é um órgão e um músculo, possui inteligência própria, por isso pode sempre crescer. Basta querer. Basta querer.