
Não sei como escrever 75 anos, é uma idade que me parece uma enormidade. Olho para ele e aquilo que os meus olhos vêm é um homem com quarenta e picos, os olhos de um azul intenso e sorridente, os dentes imaculados e alinhados, a barba já branca e a careca assumida. Eu tenho vinte e poucos anos, sou uma miúda ambiciosa a acabar o curso de Direito na Clássica que tem o bichinho do jornalismo e é contratada por uma revista de negócios para entrevistar os homens com mais sucesso dos anos 90. Portugal está deslumbrado com a Comunidade Económica Europeia, o país está em crescimento s corre a notícia que seremos a capital escolhida para uma exposição gigante na zona oriente que de Lisboa está cheia de contentores e de terrenos baldios. Naquela época é difícil imaginar que vai nascer ali uma segunda cidade e no entanto, trinta anos depois, a zona da Expo é um novo mundo.
Viajo no passado para me ver de cabelo curto, óculos redondos de aros finos de metal à John Lennon e brincos de argolas do tamanho de pulseiras, ténis all stars e camisas largas, num tempo em que acreditava que ia encontrar o príncipe encantado, casar talvez sem véu, mas certamente de grinalda e constituir uma linda a penteada família de três rebentos como os meus pais tinham feito. Afinal o príncipe dos meus sonhos casou com uma loira parecida comigo, importada de um país nórdico, e eu chorei durante três dias. Foi então que conheci o homem que me arrancou da tristeza e me levou a passear pelo mundo. Com ele palmilhei Madrid, Barcelona, Londres, Paris, Berlim, Florença, Roma, Nova Iorque, Chicago e São Francisco durante quatro anos de um romance deliciosamente clandestino.
Nunca aprendi tanto em tão pouco tempo, embora quatro anos sejam quase metade de uma década, e afinal não vivemos assim tantas. O Luís foi o meu professor do mundo e da vida. Conhecia a condição humana como um mapa que cresceu a ver pendurado na parede da cozinha. Foi ele que me explicou que os homens ou estão apaixonados, ou andam nas apostas múltiplas, que um tipo é muitas vezes infiel apenas porque sim, que existem na cabeça dos homens várias gavetas sem vasos comunicantes, que os homens se arrependem sempre que magoam uma mulher, seja a sua ou outra, que as mulheres a partir dos 40 nunca fazem nem dizem nada sem pensar nas consequências, mas se por acaso se apaixonam, perdem a cabeça e a vergonha e levam tudo à frente. Também foi ele que me ensinou a dar sempre a mão a quem precisa, embora nunca me tenha dito que era assim que devia ser feito. Eu via-o fazer isso todos os dias com os amigos, os irmãos, as antigas namoradas. O telefone tocava, ele atendia, sorria e repetia invariavelmente a frase:
- Então diz lá o que é que precisas.
Do outro lado alguém lhe pedia ajuda e ele ajudava. Fazia pontes, contactos, usava o seu charme e simpatia para interceder a favor de terceiros. Raras vezes o vi pedir ajuda a outras pessoas para as suas questões e problemas. Nunca o ouvi queixar-se da doença da mãe, do irmão internado com problemas de drogas a quem ele pagava todos os tratamentos, do outro irmão que já lhe espatifara um carro e tentara enganá-lo num negócio. O Luís era assim porque nem lhe passava ser de outra maneira e foi com ele que aprendi a praticar a generosidade.
Os anos passaram e ficámos grande amigos. Nunca nos perdemos nem da vista nem do coração, almoçamos algumas vezes por ano. A nossa amizade não regressou ao território erótico, no tempo em que eu era ainda uma miúda à procura de emoções fortes e ele já um senhor de fato italiano e sapatos feitos à medida em Londres. Agora sou uma senhora de camisas de seda justas e conjuntos da Max Mara que se apresenta nas reuniões com carteiras de marca. Abandonei as ilusões jornalísticas, especializei-me em imobiliário e abri o meu escritório de advocacia. Os primeiros negócios, foi o Luís que mos ofereceu de bandeja, com o argumento que precisava de assessoria jurídica, quando na verdade o que ele me estava a querer dizer era:
- Então diz lá o que é que precisas.
Não sei se o vejo como um amigo extraordinário, o irmão que nunca tive ou o pai que perdi muito cedo, mas sei que ele, sempre que me leva a almoçar peixe grelhado numa tasca qualquer, ainda me vê como aquela miúda ambiciosa que o entrevistou numa tarde de Primavera e que ele ajudou a tornar-se mulher. Ao longo da vida aparecem poucos homens que fazem tudo por nós. Eu tive o Luís. Quando fez 75 anos enviei-lhe 75 rosas.
As flores nunca demais para aqueles que só querem o nosso bem.