
Já visitei uma das mais belas pontes do mundo. A ponte U Bein ergue-se em estacas elegantes e simetricamente distantes na orla da cidade de Amarapura na antiga Birmânia, hoje Myanmar. A ponte foi construída em 1850 e acredita-se que seja a ponte de madeira mais antiga do mundo. Tem pouco mais de um quilómetro e é linda de morrer, quer pela paisagem envolvente, quer pela sua largura, pois é uma ponte magrinha, como se toda ela fosse o prolongamento da cintura de uma bailarina. Os seus mais de mil pilares erguem-se sobre o lago Thaungthaman. Foi desenhada e construída em curva para melhor resistir à força das águas e dos ventos. Na época das monções, o lago enche-se e dizem que é quando é mais bonito atravessá-la.
Atravessei-a em fevereiro, o mês mais curto do calendário gregoriano e o mais comprido no meu calendário interior porque, por mais que tente, nunca consigo escrever como durante os primeiros meses do ano. Na verdade, entre Janeiro e Abril a minha cabeça fica reduzida ao estado de pousio, resultado inevitável do sistemático esforço do último semestre do ano no qual acabo, às vezes por milagre, por publicar um livro.
Ia a meio da travessia em modo passeio quando conheci um monge budista, já com 60 anos, que meteu conversa comigo. Esqueci o seu nome, mas não a sua história. Fora preso político durante cinco anos. Enviuvara há três e vivia num templo desde então. Acordava às 4 da manhã, meditava até às 6 e meia, hora a que tomava a primeira refeição. Continuava a meditar até às 11.30, hora a que tomava a segunda e última refeição do dia. A esse ritual de sair pela rua com uma bowl que recolhe oferendas chama-se a Ronda das Almas.
Na Birmânia monges e monjas não vivem fechados nos mosteiros. Fora dos horários de meditação, podem fazer o que lhes apetecer. Ele gostava de fazer amigos entre os turistas. Nunca tinha fome, só sede. Devia ter sido um homem bonito quando era novo. Tinha um porte nobre, aristocrático sem ser altivo. Durante a tarde gostava de se sentar num dos três paradores que existem na ponte e metia conversa com que passava. E foi assim que fez dezenas de amigos, cujas fotografias exibia com um sorriso imenso e generoso no seu smartphone. Sentia que tinha o mundo na mão. Quem não sente?
Esqueci o seu nome, mas não os seus ensinamentos: quanto menos desejares, mais feliz serás. O sofrimento vem da carência, desse sentimento que nos faz ansiar por alguma coisa. Avoid the craving, disse-me. Nunca mais deixei de pensar naquilo. Não me imagino num mosteiro de cabeça rapada a acordar a meio da noite nem a tomar a última refeição antes do meio-dia, mas invejei a sua paz interior. Ele precisava de muito pouco e talvez fosse esse o segredo da sua felicidade. Os filhos estavam criados e viviam noutra cidade, a mulher já partira, acredito que viver no mosteiro fosse muito mais agradável do que sozinho em casa, fechado para o mundo a remoer o passado que nunca mais volta.
Nesse mês, com a sabedoria deste e de outros ensinamentos budistas, consegui limpar o coração do peso da tristeza. Andei de balão, visitei templos em várias cidades, descobri uma praia maravilhosa chamada Gnapali, comprei um par de sinos pequenos que dançam com a brisa e regressei com os mesmos 12 quilos de bagagem e a alma muito mais leve.
Vi poucos muros na Birmânia. A norte, os militares estavam em pleno genocídio contra o povo Rohingya mas não se falava do assunto. Foi-me soprado ao ouvido por uma inglesa residente que, se nos ouvissem comentar o assunto, podíamos ser presas ou deportadas de imediato.
Num país sem muros, o silêncio imposto era afinal o muro mais esmagador de todos. Tentei relevar a violência do regime ditatorial e o horror do massacre algumas centenas de quilómetros acima do meu sossego. Não era o meu país, não era a minha guerra. Tentei acreditar nos ensinamentos do monge. Tentei imaginar que uma ponte poderia ser construída entre nós em algum momento. O silêncio prolongado impôs a sua lei e verdade. Num mundo em que deviam existir muitas mais pontes que muros, os muros continuam a crescer. Não vão cair. Não enquanto eu for viva. E depois virá o aquecimento abrupto do planeta, as águas irão galgar as cidades e, quem sabe, alguns muros irão ceder ao prenúncio do fim do mundo como o conhecemos.
Espero que o lago Thaungthaman não afogue a ponte U-Bein, eterno símbolo das amizades puras no meu coração de escritora que á atravessada todos os dias por milhares de almas inquietas à procura de respostas que a vida nunca dá. Às vezes, o melhor é nem fazer perguntas.