
- O que gostas de tomar ao pequeno-almoço? – perguntei à Vanessa, a minha amiga espanhola. 43 anos, o peito operado, olhos cor de amêndoa imensos e às vezes tristes, os dentes perfeitos, um cabelão loiro ondulado pelas costas abaixo, a barriga de tambor, as pernas magras, as mãos cuidadas.
- Um café forte, uma limonada, um iogurte grego com frutos secos e uma fatia de pão escuro com um fio de azeite.
- Nada de manteiga?
- Tem dias. – respondeu com uma expressão vaga.
Não a via há vinte anos. Ficámos amigas numa viagem a Serra Nevada quando eu ainda tinha equilíbrio para descer pistas azuis. Depois, o tempo ou a vida levaram-me a vontade de voltar a carregar os skis, de subir nas cadeirinhas ou nos t-bar, de estar sempre atenta para não perder as luvas, o protetor solar, o gorro, os óculos, os batons, o forfait, e por fim o equilíbrio para descer com suavidade, sempre a subir um bocadinho a montanha para não perder o controle. Ou talvez tenha sido do AVC, as zonas da audição e do equilíbrio sofreram lesões, foi o que disse o médico, e depois acrescentou:
- Teve muita sorte, é raro alguém ficar tão bem depois de um acidente deste tipo.
Acidente Cardio Vascular, entenda-se. Aparentemente sem sequelas, porque nunca perdi o meu ouvido de tísica com pretensões a estereofónica – consigo ouvir três conversas ao mesmo tempo – mas quando voltei à montanha, percebi que afinal o equilíbrio já não era o mesmo.
- Vejo-te tristonha – digo à Vanessa, que parece ter tudo: dois filhos lindos, duas enteadas adoráveis, um marido milionário que a adora, um apartamento em Madrid e outro em Nova Iorque, casa em Saint-Troppez e em Ibiza.
- Passo muito tempo sozinha, o Álvaro está sempre a viajar e como viste ontem, está gordo como um elefante.
A Bela e o Monstro. Ela uma boneca, ele um ogre. Quando o conheci há vinte anos ainda estavam de caso, ele casado com uma couve, sempre atrás dela como um cão, e ela a ponderar aquele senhor mais velho que lhe prometia o mundo. Ponderou, ele divorciou-se e casaram. Foram felizes durante muitos anos até ela descobrir que ele tinha outras.
-Não outra fixa, como eu antes de casarmos, mas outras.
- No fundo é a mesma coisa - respondi.
- Claro que sim, traição é traição, e o que mais me irrita é que foi ele que me conquistou, andou anos atrás de mim e quando lhe dei dois filhos lindo e criei as minhas enteadas como se fossem do meu sangue, descobri que afinal não era completamente certo. Não percebo porque é que os homens fazem isto.
- Deve ser mais forte do que eles.
- E tu? Porque não te casaste outra vez?
Respirei fundo e tentei resumir 40 anos de vida da forma mais clara e sucinta que me ocorreu:
- Só me apaixonei três vezes. O primeiro gostava de mim mas não o suficiente porque se casou com outra, o segundo casou comigo mas era maluco, e o terceiro não sei se é maluco ou não, mas também não escolheu.
- E agora?
- E agora o primeiro está separado e anda a rondar, mas já está velhote, o segundo vai na quarta mulher e o terceiro está na vida dele.
- Por lo menos, foste vivendo a tua vida – retorquiu com um suspiro.
- Claro que sim, com o equilíbrio possível. Isso é que nunca se pode perder.
- Também pensei nisso quando o Álvaro e eu entrámos em crise. No meu equilíbrio e dos meus quatro filhos. Não quis destruir a nossa família. Aguentei, engoli, mas nunca ultrapassei. Na verdade, nunca fui mais a mesma pessoa.
Fiquei a pensar se seria capaz de fazer o mesmo; aguentar as traições de um ogre em prole de uma família feliz. Talvez sim, se o amasse. Mas hoje em dia acredito que é mais fácil alguém chegar ao céu do que ao meu coração. Sou uma romântica blindada. Não tive outro remédio.