
Existe um dia no calendário Maia entre um ano e o outro fora do tempo, como se o próprio tempo precisasse de parar e de ganhar fôlego, para depois recomeçar. Esse dia foi a 25 de Julho. Como o Verão anda arisco, nessa manhã levantei-me cedo e fui fazer uma caminhada pela praia quase deserta.
Liguei o Spotify, pus s fones, peguei na Maria Luísa e pedalei furiosamente pela ciclovia até chegar ao parque de estacionamento. Passei ao lado da cancela e percorri o passadiço da praia até ao final. Desci da Maria Luísa, coloquei o cadeado e retirei do cesto da frente a minha garrafa de água verde-florescente que combina com a sola dos ténis pretos. Ninguém repara nestes pormenores, mas reparo eu e, como tantas vezes acontece, o que for importante para nós é que interessa.
Comprei a garrafa num Verão longínquo já perdido num tempo em que o a caminho para a praia era feita por estradas de terra e os forasteiros pensavam que a região da Comporta só tinha a praia da Comporta e a do Carvalhal. As duas seguintes, a dos Brejos e a do Pêgo eram quase exclusivamente frequentadas por locais ou pessoas que há anos passavam férias na Herdade.
De um ano para o outro tudo mudou. Os caminhos de terra foram substituídos por estradas de alcatrão, as setas de madeira por placas gigantes e horrendas, os cruzamentos por rotundas. O que mais me chocou foram as rotundas e as filas de candeeiros à beira da estrada, muitos mais do que seria necessário. Depois vieram os curiosos, os wanna-be, os espanhóis, franceses, alemães e ingleses e desataram a comprar tudo o que estava à venda. Ontem na praia, debaixo de um sol tímido, ouvi quatro idiomas diferentes, nenhum era o meu. Não sei o que pensar sobre isto, porque tenho sempre mix-feelings em relação ao progresso como aliás em relação a muita coisa. A ambivalência parece fazer parte de mim, sinto-a a correr no sangue cada vez que penso que foi melhor assim, tu na tua vida e eu na minha e no dia seguinte me sinto triste com as nossas escolhas e dou comigo a pensar que nunca vou ser aquela pessoa que estava sempre feliz e era sempre otimista e confiante.
Ia já a caminhar quando ouvi um ruído pouco habitual. Era o galopar de um cavalo. Eu escolhera a direção da praia dos Brejos por ser quase sempre deserta, virei-me a vi um vulto que em nada me parecia familiar. Foi quando se aproximou e lhe ouvi a voz que o reconheci. Era o Manel, meu amigo de adolescência, um dos rapazes mais bonitos da minha geração que namoriscara várias amigas minhas e nunca casara. Não o via há mais de vinte anos. Continuava bonito, o cabelo branqueado pelo tempo parecia realçar os olhos muito azuis.
- Madalena! És tu não és?
- Manel! Como me reconheceste depois de tantos anos?
- Não sei, segui o meu instinto, acho que foi pelo cabelo.
Mais do mesmo. Não sou alta mas Deus deu-me um cabelo ruivo de anúncio que se tornou a minha marca distintiva, uma espécie de marca d´água que me rouba o anonimato, até nos lugares mais inesperados. Uma vez em Pushkar, junto ao lago, estava a contemplar o horizonte quando um giraço se aproximou e perguntou:
- É a Madalena não é? Sigo-a no Instagram.
O giraço eras tu. Apaixonei-me assim que disseste o meu nome. Também viajavas sozinho, também não tinhas data de regresso, eu nunca tinha dado por ti mas tu há muito que me seguias os passos e quando me encontraste à beira das águas sagradas, preferimos pensar que o destino era o nosso Cupido.
Quatro anos mais tarde continuo sem me lembrar bem como tudo aconteceu. Olho para trás e a única distinção que consigo fazer é Antes de Ti e Depois de Ti porque nunca mais fui a mesma pessoa. Chegaste a vir comigo à Comporta algumas vezes, depois a vida trocou-nos as voltas e deixaste de me seguir no Instagram e na vida.
O Manel desceu do cavalo, sorriu e disse:
- Continuas linda.
Sempre foi um sedutor. Quando era miúda suspirava para que olhasse para mim, mas agora só queria continuar a minha caminhada.
- Estás cá de férias? Alugas cá casa?
- Não, vim só passar o dia – respondi.
Nunca minto, mas desta vez era a única saída. Disse-lhe adeus com a mão, já virada de costas. Por momentos senti-me tentada e entrar nas ondas e diluir-me na água, mas voltei ao passadiço e pedalei na Maria Luísa até casa. Nunca mais fui a mesma pessoa, tenho saudades de mim. Às vezes penso que a minha marca d’água és tu. Ninguém a vê, apenas eu, e o que é importante para nós é o que interessa.
Felizmente, o cabelo está igual, ruivo, longo e farto, atrás do qual escondo o coração para que ninguém lhe chegue.