
O Verão andou tão perdido no tempo que só agora caíram as últimas flores do meu jacarandá. Durante mais de um mês pontinhos cor violeta enfeitaram a relva, colando-se ao verde intenso, formando um tapete bucólico e adorável, e eu sorria placidamente porque já nem me lembrava que tinha plantado um jacarandá quando comprei a casa da encosta há quase vinte anos. Só no regresso me dei conta desse feliz gesto, um jacarandá só para mim. A Natureza é isto, quando uma planta se decide a crescer, é preciso ajuda-la para que não se torne maior do que a própria vida.
Ainda não dei um nome ao meu jacarandá. Dou nomes a tudo o que gosto, e quanto mais gosto, mais alcunhas invento. A última de que me lembrei foi cão de loiça, que te chamei por não responderes às minhas mensagens. Mas isso foi antes de desistir de tudo, que é a única coisa sensata a fazer quando já tudo se perdeu na espuma dos dias, na indiferença instalada, no silêncio como única via de comunicação, na frieza em que tudo se desmoronou, primeiro por fora, com discussões e zangas, e depois por dentro, como um edifico que implode em câmara lenta, um andar por dia, numa descida infernal de uma bola de neve contrariada.
Olho para o meu jardim e sinto o consolo da beleza que me rodeia. Oiço as conversas das árvores e ao fundo a sinfonia imprevisível das sirenes das embarcações. De vez em quando vou a Lisboa, mas demoro sempre pouco. Uma força nova faz-me voltar para o lugar sossegado cheio de luz e de paz que é agora a minha casa. Durante os fim-de-semana o meu filho e a minha nora aparecem com as miúdas e a casa enche-se de alegria e de energia. Saio da minha apatia para fazer saladas inspiradas, sobremesas modernas e sumos de fruta que enchem jarros de vidro. Ponho a mesa no jardim, ouvimos música, trocamos livros e conversamos sobre tudo, como sempre fizemos. Depois eles dão mergulhos e quando olho para a piscina, a minha memória invade o presente e vejo o meu filho ainda pequeno, o cabelo curto e os olhos muito azuis a divertir-se com os amigos e a fazer bombas que salpicam o mundo de alegria.
Não há nada mais estranho do que o tempo que se estica e encolhe como um harmónio, que é leve ou pesado consoante a companhia, que às vezes para quando perdemos a cabeça, que desenha projetos e ilusões no futuro, que é sempre misteriosamente longínquo ou perigosamente próximo no passado e que afinal nunca passa porque nós é que passamos por ele até ao último suspiro. O tempo é o maior ladrão, acaba por levar tudo e ainda[MR1] se fica a rir da vida.
Pela primeira vez em muitos anos, conto com o tempo como meu aliado. Tudo o que desejo é que o Verão se prolongue durante muito tempo, porque é quando ficas mais longe, e desta vez quero que nunca mais voltes.
Ainda assim, quando o frio voltar e as árvores voltarem a despir-se, se te passar pela cabeça tal disparate, é bom que percebas que já vens tarde. Tarde para consertar o que foi destruído, para emendar a mão quando se perdeu o pé, quando o silêncio minou o entendimento e a frieza instalou o desrespeito. Já vens tarde porque uma terra queimada não pode voltar a arder. São precisas várias estações, ciclos de vida que se repetem atá conseguir inverter a realidade e contruir uma nova verdade. E quando o meu jacarandá voltar a encher-se de flores, vou lembrar-me que já te esqueci.
Uma pessoa vazia não é uma pessoa sem nada na cabeça, é uma pessoa sem nada no coração. A emoção é uma forma de inteligência, nunca conheci um cão de loiça que guardasse uma casa ou aquecesse os pés do dono.