
Estava cansada de Lisboa, meti-me no carro e fui pela A1 fora até chegar a Santarém. Abri a casa toda, dei uma volta pelo jardim bem cuidado e chamei a Maria para me pôr a par das novas na terra. A terra não é bem Santarém, mas uma aldeia encantada a poucos quilómetros com uma rua principal cheia de casas térreas caiadas e uma capela que parece encomendada para um cenário de uma comédia romântica.
- A Micas fugiu, menina Luísa.
- A Micas? A filha do senhor Ernesto da mercearia?
- Sim. Abalou com um senhor mais velho, um reformado abastado, que largou a mulher, os filhos e os netos. Aquele senhor militar que às vezes vinha cá conversar com o seu paizinho, a menina lembra-se?
Não me lembro a última vez que o meu pai recebeu amigos na casa de Santarém. A doença isolou-o da vida social, depois da família e agora dele mesmo. Vive no torpor de quem já não tem paciência para estar vivo, ainda que o coração, os pulmões, o fígado, o estômago e os rins continuem a funcionar. Falta-lhe o ânimo, e quando uma pessoa perde o ânimo esquece-se de ser grata à vida.
- Mas a Micas não era casada com aquele rapaz que ajuda o teu marido aqui no jardim, ao Anselmo?
Do Anselmo lembro-me bem, tem uma casa de bicicletas, somos clientes do pai dele há duas gerações. Vi o miúdo crescer, ficar com buço, mudar de voz, usar os mais variados cortes de cabelo e fazer-se um homem. Há um ano cruzei-me com os noivos a saírem da capelinha da aldeia, ela muito roliça, já com uma encomenda na barriga e ele de fato azul brilhante e laço prateado.
- Então e o bebé?
- Ora, ela nunca quis saber do menino – respondeu a Maria – O Anselmo chegava-lhe a roupa ao pêlo e antes que lhe desse para bater no petiz, mandou-o para casa da mãe dela ali em Tremez. E aqui há coisa de uns quinze dias fugiu com o tal senhor militar, até pensaram que a rapariga tinha sido raptada e morta, se não fosse o Facebook até agora ninguém sabia de nada da vida dela.
- O Facebook?
- Sim menina, ela escreveu ao marido e à mãe lá, para toda a gente ler, a explicar que tinha ido para o Canadá mais o outro senhor e que não sabia quando voltava. Até meteu uma fotografia tirada no avião, uma 'selfe', para mostrar que estava viva.
Inútil tentar explicar à Maria que não se diz 'selfe', quando no Ribatejo também se diz 'presunte e borregue'. Fiquei pensativa. O senhor militar terá aproximadamente a idade do meu pai. Ainda que seja mais novo dez anos, anda pelos 70. A Micas não deve ter chegado aos 30. Falta de pai não é o caso, já que o senhor Ernesto sempre cuidou e estimou a filha. O que lhe terá dado para fugir com um homem tão velho?
- Ao menos o velho era bonito? – perguntei à Maria, mais curiosa em me deliciar com a resposta do que em descortinar os atributos do geriátrico.
- É bem apessoado, lá isso… brilhantina, sempre de gravata, mas tão gordo que até parece o Vasco Santana ressuscitado – Respondeu a Maria. – A menina quer um bocadinho de 'borregue' que sobrou de ontem do nosso jantar? Olhe que ficou muito apurado. Eu vou-lhe buscar num 'trampaware'.
Acendi a lareira e escolhi 'A Pastoral' de Beethoven enquanto a Maria me foi buscar o almoço. Procurei a Micas no Facebook e lá estava com o seu senhor. Era de facto parecido com o Vasco Santana. A Maria regressou com um tabuleiro todo bem-posto.
- E então o Anselmo? Anda por aí aos caídos?
- Apanhou umas carraspanas de sair de rastos dos cafés, mas dizem as más-línguas que também é 'pandeleiro', por isso já 'nã' sei nada.
Mais um vocábulo à moda da Maria.
- A menina quer um 'caféi' a seguir à fruta?
- Não Maria, deixe estar, vou dormir uma sesta.
Deitei-me no sofá da sala, a lareira a crepitar de alegria e 'A Pastoral' a embalar-me até cair num sono profundo. Que bem que se está no campo.