'
FLASH!
Verão 2025
Compre aqui em Epaper
Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

Notícia

Margarida Rebelo Pinto: Que Bem Que Se Está no Campo

Inútil tentar explicar à Maria que não se diz 'selfe', quando no Ribatejo também se diz 'presunte e borregue'. Fiquei pensativa. O senhor militar terá aproximadamente a idade do meu pai.
10 de fevereiro de 2017 às 07:00
cavalos
cavalos

Estava cansada de Lisboa, meti-me no carro e fui pela A1 fora até chegar a Santarém. Abri a casa toda, dei uma volta pelo jardim bem cuidado e chamei a Maria para me pôr a par das novas na terra. A terra não é bem Santarém, mas uma aldeia encantada a poucos quilómetros com uma rua principal cheia de casas térreas caiadas e uma capela que parece encomendada para um cenário de uma comédia romântica.

- A Micas fugiu, menina Luísa.

- A Micas? A filha do senhor Ernesto da mercearia?

- Sim. Abalou com um senhor mais velho, um reformado abastado, que largou a mulher, os filhos e os netos. Aquele senhor militar que às vezes vinha cá conversar com o seu paizinho, a menina lembra-se?

Não me lembro a última vez que o meu pai recebeu amigos na casa de Santarém. A doença isolou-o da vida social, depois da família e agora dele mesmo. Vive no torpor de quem já não tem paciência para estar vivo, ainda que o coração, os pulmões, o fígado, o estômago e os rins continuem a funcionar. Falta-lhe o ânimo, e quando uma pessoa perde o ânimo esquece-se de ser grata à vida.

- Mas a Micas não era casada com aquele rapaz que ajuda o teu marido aqui no jardim, ao Anselmo?

Do Anselmo lembro-me bem, tem uma casa de bicicletas, somos clientes do pai dele há duas gerações. Vi o miúdo crescer, ficar com buço, mudar de voz, usar os mais variados cortes de cabelo e fazer-se um homem. Há um ano cruzei-me com os noivos a saírem da capelinha da aldeia, ela muito roliça, já com uma encomenda na barriga e ele de fato azul brilhante e laço prateado.

- Então e o bebé?

- Ora, ela nunca quis saber do menino – respondeu a Maria – O Anselmo chegava-lhe a roupa ao pêlo e antes que lhe desse para bater no petiz, mandou-o para casa da mãe dela ali em Tremez. E aqui há coisa de uns quinze dias fugiu com o tal senhor militar, até pensaram que a rapariga tinha sido raptada e morta, se não fosse o Facebook até agora ninguém sabia de nada da vida dela.

- O Facebook?

- Sim menina, ela escreveu ao marido e à mãe lá, para toda a gente ler, a explicar que tinha ido para o Canadá mais o outro senhor e que não sabia quando voltava. Até meteu uma fotografia tirada no avião, uma 'selfe', para mostrar que estava viva.

Inútil tentar explicar à Maria que não se diz 'selfe', quando no Ribatejo também se diz 'presunte e borregue'. Fiquei pensativa. O senhor militar terá aproximadamente a idade do meu pai. Ainda que seja mais novo dez anos, anda pelos 70. A Micas não deve ter chegado aos 30. Falta de pai não é o caso, já que o senhor Ernesto sempre cuidou e estimou a filha. O que lhe terá dado para fugir com um homem tão velho?

- Ao menos o velho era bonito? – perguntei à Maria, mais curiosa em me deliciar com a resposta do que em descortinar os atributos do geriátrico.

- É bem apessoado, lá isso… brilhantina, sempre de gravata, mas tão gordo que até parece o Vasco Santana ressuscitado – Respondeu a Maria. – A menina quer um bocadinho de 'borregue' que sobrou de ontem do nosso jantar? Olhe que ficou muito apurado. Eu vou-lhe buscar num 'trampaware'.

Acendi a lareira e escolhi 'A Pastoral' de Beethoven enquanto a Maria me foi buscar o almoço. Procurei a Micas no Facebook e lá estava com o seu senhor. Era de facto parecido com o Vasco Santana. A Maria regressou com um tabuleiro todo bem-posto.

- E então o Anselmo? Anda por aí aos caídos?

- Apanhou umas carraspanas de sair de rastos dos cafés, mas dizem as más-línguas que também é 'pandeleiro', por isso já 'nã' sei nada.

Mais um vocábulo à moda da Maria.

- A menina quer um 'caféi' a seguir à fruta?

- Não Maria, deixe estar, vou dormir uma sesta.

Deitei-me no sofá da sala, a lareira a crepitar de alegria e 'A Pastoral' a embalar-me até cair num sono profundo. Que bem que se está no campo.

você vai gostar de...

Mais notícias de Pessoas Como Nós

A menina Clarinha e eu

A menina Clarinha e eu

Não sei quantas vezes tentei esquecer-te, talvez menos do que tu e mais do que o meu coração aguenta, a única que sinto é que, cada vez que a dou espaço à razão, o meu coração começa a encolher-se como um bolo sem fermento, a vida fica sem açúcar e os dias sem sabor.
Mergulhar no futuro

Mergulhar no futuro

Agora, enquanto a ameaça da pandemia pairar sobre Portugal e o mundo, espero pacientemente por aquele momento mágico em que vou poder voltar a mergulhar no mar. A vida ensinou-me a mergulhar no futuro, mesmo quando o futuro é um lugar vago e incerto.
Com cinco letras apenas

Com cinco letras apenas

É engraçado como as palavras mais belas e mais importantes têm três, quatro ou cinco letras. Mãe, pai, avô, avó, tio, tia, filho, paz, saúde, sonho, amor, fado. Beijo, abraço, toque, sim, não, já, agora, calma, vem, fica.
Claras em Castelo

Claras em Castelo

Estar fechada em casa não me custa, o que me custa é não ver o meu filho e os meus pais, as minhas sobrinhas e os meus irmãos, as minha amigas e amigos. Na verdade, o que me custa ainda mais, é não acreditar que, quando a pandemia passar, as pessoas não vão mudar. Agora acreditam que sim, estão paralisadas pelo medo, mas são apenas boas intenções, porque as pessoas não mudam.

Subscrever Subscreva a newsletter e receba diariamente todas as noticias de forma confortável