
Vieram de longe. Do Nepal, do Bangladesh, do Paquistão, do Vietname, da Índia, vieram de lugares onde a miséria não tem limites. Muitos confiando na fé que traficantes de carne humana lhes venderam. Outros confiando no destino. O desespero é o cimento da sobrevivência. Muitos chegaram legalmente, desconfio de que a maioria chegou clandestina, assim como duvido de que as autoridades saibam ao certo quantos homens e mulheres entraram em Portugal fugindo da fome, da guerra e da morte. Desgraçadamente, sabemos que muitos deles são escravos. Espoliados das suas identidades, dos direitos de cidadania mais elementares, submetido à tirania do traficante.
Descobrimos que somos um País que aceita a escravatura quando, há tempos, se descobriu a situação de centenas deles nos campos de Odemira. Mais tarde, foram mais centenas que soubemos que existiam, recolhendo azeitona nos campos do Alentejo.
Esta semana, soubemos deles por motivos mais dramáticos. Em Olhão, um grupo de delinquentes dedica-se a espancar e a roubar nepaleses. Em Lisboa, ardeu um prédio, na Mouraria, em que no rés do chão viviam 16 pessoas, oriundas do Bangladesh. Duas delas morreram e os restantes, as televisões mostraram, ficaram na rua, encostados às paredes, com as suas vidas metidas em sacos de plástico. É certo que os dois acontecimentos são diferentes quanto à forma. Em Olhão são manifestações racistas movidas por ódio exacerbado contra quem é diferente. Em Lisboa, é a manifestação mais ruim da miséria humana que faz desta gente os mais infelizes dos seres humanos. Porém, quer no Algarve, quer em Lisboa, são todos famintos de liberdade, de cidadania, da dignidade com que estamos obrigados, pela nossa Constituição, a tratar qualquer ser humano.
Este é o País clandestino que habita no País que quer ser dos mais avançados da Europa e que, afinal, não passa de um lupanar de injustiças que o torna num dos mais atrasados da União Europeia. Não é apenas um problema com as leis da emigração. É antes de mais um problema da nossa dignidade coletiva, da nossa solidariedade andrajosa, da nossa indiferença cívica que vai produzindo esta tragédia de deserdados. Uma vergonha nacional.