Kiko Martins: o mundo à mesa numa Lisboa que nunca mais foi igual
Começou no Marketing mas haveria de apaixonar-se pela cozinha. O lado empreendedor ganhou-o ainda criança, quando fazia bolos para vender. Abriu o primeiro restaurante com apenas 25 anos. Mas foi o amor pela mulher e a viagem à volta do mundo feita pelos dois que verdadeiramente inspirou Kiko Martins para o que aí vinha. O Talho foi o primeiro de vários projetos que bebem a energia e os sabores de países diferentes. Atualmente, são quatro espalhados por Lisboa e há mais a caminho.
O encontro ficou marcado para de manhã cedo, cerca das 9h00, no Mercado 31 de Janeiro, no Saldanha, em pleno coração de Lisboa. Francisco Martins, o famoso chef Kiko, chega 10 minutos atrasado, algo pouco habitual – perceberemos mais tarde a razão do atraso. Já lá vamos.
Traz energia no andar e alegria no olhar: um misto de quem não tem tempo a perder mas que valoriza demasiado cada momento para desbaratar um que seja. "Só conseguindo viver e saborear bem o presente é que conseguimos fazer várias coisas ao longo do dia. Se andarmos sempre a saltitar e não estamos onde estamos acaba por ser totalmente contraproducente", justifica.
Neste momento, o chef Kiko Martins tem quatro restaurantes a funcionar na capital: O Talho, junto à Av. António Augusto de Aguiar, o Poke, no El Corte Inglès, a Cevicheria, no Príncipe Real, e O Boteco, na Praça Luís de Camões. No entanto, há ideias para mais projetos e o futuro promete novidades. Aos 41 anos, "quase a fazer 42", Kiko sente-se "ainda com muita energia, com muita vontade de continuar a fazer conceitos e restaurantes, formar pessoas, criar menus diferentes e continuar a tentar surfar e a viver com esta alegria e esta pujança".
Voltemos ao mercado 31 de Janeiro. "É impressionante a quantidades de bons produtos que aqui há", refere à medida que vai parando à conversa com os vendedores. A "interação com vendedor/produtor" e descobrir produtos que não encontra em nenhum outro lugar são as principais razões para Kiko Martins visitar este espaço inesperado no centro da capital. O contacto sai-lhe com facilidade. Seguramente uma característica do seu espírito de viajante, de homem do mundo, grandemente responsável por tudo o que é hoje.
Kiko Martins nasceu no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro. Filho de mãe pernambucana, é o mais novo de oito irmãos – três continuam a viver do outro lado do Atlântico. Influências que lhe apuraram a personalidade. "Não só no desenvolvimento do paladar, como no meu historial. Há um lado daquela ginga e daquela alegria brasileiras, o lado de ter crescido com sabores mais tropicais, como a manga, o coco, o açaí, tudo isso influenciou e muito."
Chegou a Portugal apenas com 10 anos de idade. O lado de empreendedor ganhou-o ainda criança, quando fazia bolos para vender. Abriu o primeiro restaurante com 25 anos, o Masstige, na Av. 5 de Outubro. Mas não iniciou pela cozinha. Kiko Martins começou em Gestão de Marketing. "Só mais tarde ingressei neste mundo". Foi há cerca de 20 anos. Depois de um estágio na Estufa Fria, tirou um curso de cozinha no Cordon Bleu, em Paris, cidade onde ficou a trabalhar durante algum tempo em restaurantes com estrelas Michelin.
De regresso a Lisboa, ainda trabalhou no Eleven antes de abrir o Masstige, em 2004/2005. Mas a mudança maior deu-se um ano e meio depois, com as viagens – mas primeiro ainda haveria de ir para Moçambique, fazer voluntariado. "Conheci a mulher da minha vida, a minha atual mulher e mãe dos meus filhos. Casei-me e fui dar uma volta ao mundo." Ao todo foram 26 países. A viagem acabou por originar a ideia para montar a empresa Comer Mundo, mãe dos vários restaurantes que Kiko Martins tem aberto. Todos eles diversos, inspirados em diferentes países.
O Talho foi o primeiro a ser inaugurado sob este conceito, há pouco mais de 10 anos. "Tinha acabado de chegar da volta ao mundo. Andava muito a pé por Lisboa, a pensar naquilo que queria fazer. Estávamos praticamente em 2008, com a crise. Todos os meus amigos chefes diziam-me para não montar um restaurante caro, nada que ambicionasse tickets de mais de 50, 60 euros, nada que ambicionasse um serviço de Estrela Michelin. Aquilo que eu pensei foi: o setor das carnes é um setor que está estagnado. Havia pouco design, pouco carinho e, às vezes, pouca honestidade nesta área. A minha ideia foi começar por montar um talho servido de um restaurante – ou um restaurante servido de um talho –, que trabalhasse as carnes de uma forma mais nobre, que investigássemos este setor, que aprendêssemos sobre isso e, acima de tudo, conseguíssemos facilitar a vida das pessoas, com todos estes preparados que são pensados para cozinhar rapidamente em casa."
É n'O Talho que o chef Kiko Martins prepara uma receita inédita, que ainda não consta na carta, para a FLASH!. Um carré de borrego marinado em azeite e ervas, em cama de milho baby, tomate, cenoura baby e ervilha torta. Para finalizar o empratamento, umas begónias (flores) e uma mistura de especiarias japonesa, Togarashi.
A cozinha de Kiko Martins reflete o gosto pelas viagens. Bebe de cada influência, de cada país visitado. "As viagens influenciaram a minha vida. Os restaurantes muitíssimo. O facto de cada restaurante ter uma energia diferente baseada num país é mesmo consequência de uma viagem. Continuo a incentivar muito este lado de inspiração mas, acima de tudo, mais do que a estética das cidades, foram as pessoas que eu fui conhecendo nesses países que me influenciaram."
E como se gere restaurantes de cozinhas tão diversas? Fácil: "Com pouca poesia, muito procedimento, muita técnica, muita formação, muito acompanhamento, muita auditoria". "Estas palavras todas implicam muito profissionalismo e uma vontade muito grande em querer trabalhar muitas horas por dia, porque sem esse trabalho nada se faz", garante o chef Kiko. Aqui tem de conjugar o lado criativo do chef de cozinha, ao lado dos "cabelos brancos e dores de cabeça" do empresário. "Felizmente tenho sócios que me apoiam nesse lado mais complicado para mim. O meu foco continua a ser sempre a cozinha e é aí que eu me divirto. Os dois têm de viver lado a lado."
É neste caos organizado que Kiko Martins vive os seus dias. "Por mais que eu o planeie [o dia], depois pode não ser exatamente aquilo que é planeado." Para além do trabalho de "escritório", dos restaurantes, entre as salas e as cozinhas, há ainda os eventos e uma parte de enorme importância que é a família, a mulher, Maria Bravo, e os quatro filhos, Sebastião, Gabriela, Matias e Lopo. Sempre que pode, a agenda diária começa bem cedo com uma corrida pela cidade. Um boost de energia para o resto do dia. "A corrida proporciona isto, estamos mais enérgicos, mais ativos. A corrida tem este efeito em mim que acabo por andar mais vivaço durante o dia."
"Hoje foi um dia não. Acordei muito cansado e não tive a disciplina suficiente para ir correr. Acordei, vesti-me, estava à sair de casa e, de repente, voltei outra vez, tirei os ténis e voltei a meter-me na cama, não corri e dormi mais uma hora." Lembra-se dos 10 minutos de atraso? Completamente justificados, chef Kiko.