Sim, Chef! por Anna Lins
Nome incontornável da cozinha asiática, em particular a japonesa, Anna Lins é a primeira sushiwoman em Portugal, com certificação de uma das mais reputadas instituições nipónicas. "Uma chapada de luva de pelica para todos aqueles que achavam que uma mulher não podia fazer sushi", orgulha-se. Agora mais afastada das cozinhas, está mais dedicada à consultoria e ao ensino. Uma prova de amor às filhas. Fomos com a chef às compras ao Martim Moniz e acompanhámos a preparação de um prato no Restaurante do Museu do Oriente by Imppacto.
O que começou por ser um mero acaso – se é que existem acasos nestas coisas – acabou por revelar-se um desígnio de vida. Anna Lins, 48 anos de idade, é a primeira sushiwoaman portuguesa, com certificado passado pela rigorosa entidade nipónica All Japan Sushi Association, recebido em 2015, e uma vida profissional dedicada às cozinhas asiáticas. Quando olha para trás, a chef mantém que ter escolhido este caminho foi uma situação "fortuita".
Anna Lins começou por estudar artes gráficas na Escola Artística António Arroio aos 15 anos. Seguiu-se uma bolsa para estudar fotografia em Inglaterra. O lado estético e artístico está presente no seu caminho desde muito cedo. O mesmo lado estético tão importante e valorizado na cozinha japonesa. Mas voltemos ao início do percurso profissional e à paixão pela gastronomia do oriente.
"As pessoas estão sempre à espera que eu tenha uma resposta romântica, que sonhei desde pequenina - porque eu fazia artes marciais e estava ligada à cultura asiática - ser cozinheira de cozinha asiática. Não é tão romântico assim", refere. Anna Lins estava no 2.º ano do curso de cozinha na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, quando sentiu necessidade de ter um lado mais prático. Aquilo que conseguia com as aulas não era suficiente. O Hotel da Penha Longa fica muito próximo da escola. "Fui à procura de alguma vaga para fazer eventos, casamentos, catering. Tinham as brigadas completas mas havia um colega que ia sair do restaurante Midori [um dos poucos restaurantes de cozinha japonesa no País] e ofereceram-me essa posição." Na altura, Anna Lins não tinha nenhuma experiência, nem de comer comida japonesa. "Foi mesmo de paraquedas", desromantiza.
"As pessoas estão sempre à espera que eu tenha uma resposta romântica, que sonhei desde pequenina ser cozinheira de cozinha asiática. Não é tão romântico assim."
O FASCÍNIO PELA COZINHA ASIÁTICA, EM PARTICULAR A JAPONESA
No entanto, o seu percurso parecia ter sido preparado para chegar aqui. O tal sentido estético e artístico tão primordial. "Quando se monta um prato de sushi ou de sashimi tem de se ter uma capacidade estética de empratamento. Não é só a capacidade técnica de trabalhar os ingredientes mas depois temos de montá-los. Tive de provar essa estética. Isso colou ao meu percurso de artes e fez todo o sentido. Também achei muito interessante na cozinha japonesa o não mascararem muito os sabores e não processarem muito os alimentos. Mesmo na cozinha quente, que é aquela que não é tão conhecida, as coisas são muito simples, são muito chegadas ao sabor natural, que obrigam a que sejam produtos de melhor qualidade. Isso fez um click na minha cabeça", revela.
Anna Lins começou na cozinha japonesa mas acabou por mergulhar nas tailandesa, chinesa, indiana, coreana, e outras daquela região do Globo. Trabalhou em vários restaurantes japoneses, alguns projetos seus em conjunto com o marido, Paulo Morais – estão atualmente separados –, como o Umai e o Izakaia, e mais tarde o Miss Jappa, do grupo Go Natural. Hoje, a sushiwoman afastou-se das cozinhas, a que continua ligada através de consultoria, como é o caso do recente Restaurante do Museu do Oriente by Imppacto, onde recebeu a FLASH!. Atividade que concilia com as aulas de cozinha asiática e dietética na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. "Voltei à minha 'alma mater' há 10 anos para formar jovens cozinheiros." VENCER O PRECONCEITO
Para atingir este patamar de excelência, reconhecido por uma dos mais exigentes instituições japonesas, Anna Lins teve de enfrentar alguns preconceitos e derrubar algumas barreiras. O sushi é uma técnica tradicionalmente entregue aos homens. "Os mitos urbanos dizem que as mulheres têm as mãos demasiado quentes para fazer sushi." No início, em 1998, a pressão fez com que Anna Lins tivesse cubos de gelo na água – molham-se as mãos para manipular o arroz e o peixe – para arrefecer as mãos. Venceu o preconceito com o trabalho, muitas vezes a servir só clientes japoneses o que aumentava substancialmente a pressão. "Com o tempo e com a certificação foi quase como que uma chapada de luva de pelica para todos aqueles que achavam que uma mulher não podia fazer sushi nem estar ao nível profissional na área do sushi", orgulha-se.
"Com o tempo e com a certificação foi quase como que uma chapada de luva de pelica para todos aqueles que achavam que uma mulher não podia fazer sushi nem estar ao nível profissional na área do sushi."
Ser mulher num universo tradicionalmente masculino trouxe algumas condicionantes. Por um lado, e ao contrário da imagem que temos de Gordon Ramsay ou de Ljubomir Stanisic aos gritos na cozinha a vociferar vernáculo, Anna Lins sempre trabalhou com brigadas onde sempre existiu paz e onde sempre se sentiu respeitada. "Protegiam-me muito", afirma. "Era já o lado japonês e asiático a vir ao de cima. As pessoas tinham de estar calmas. A partir do momento em que se começa a gritar e que se perdem as estribeiras, derrapamos. Com um serviço de 80 pessoas, se começa a acumular e o stresse a aumentar e se não houver alguém que ponha travão e baixe a intensidade, então aí é que descarrila. Por isso esta é uma profissão que tem e muita gente não consegue aguentá-la."
stresse
Foi por essa pressão mas também por amor às filhas que Anna Lins decidiu redirecionar a sua carreira. "São muitas horas. Temos os turnos repartidos: entrar às 9:00, 10:00 da manhã, dar almoços, fazer um intervalo à tarde de duas três horas e começar a preparar jantares até 10:00 da noite e sair, muitas vezes, à 01:00 da manhã. É muito difícil ter vida familiar entrando num espaço às 10:00 da manhã, ter um intervalo a meio da tarde e sair à 1:00 da manhã. Tenho duas filhas. Houve uma altura em que achei que também esta parte era importante na minha vida e tinha de dar uma pausa ao lado profissional. Já tinha satisfeito o gozo e a piada de fazer serviço e dar a carta. Tinha de me dedicar mais a elas. Aqui, a decisão executiva foi: acabou-se de dar carta, acabou-se de sair às 2:00 da manhã de um restaurante; estar mais com elas. Aí comecei a tentar fazer coisas alternativas, como dar aulas, consultorias, desenvolver projetos e conseguir equilibrar os dois lados."
"Tenho duas filhas. Houve uma altura em que achei que também esta parte era importante na minha vida e tinha de dar uma pausa ao lado profissional. Já tinha satisfeito o gozo e a piada de fazer serviço e dar a carta."
REPENSAR A PROFISSÃO POR AMOR ÀS FILHAS
Também aqui as mulheres acabam por ser penalizadas. "A sociedade tem esta mentalidade que a função da família é da mulher. É triste porque há homens extremamente competentes. Até há casais em que o homem é mais competente que a mulher. A partir do momento em que o casal tem a ideia de ter filhos já se sabe que é a mulher que cuida. O pai das minhas filhas também é chef de cozinha – Paulo Morais – e logo no início eu remeti-me a fazer almoços para poder assegurar a família e as filhas e ele fazer e desenvolver a carreira dele. Chegou uma altura em que quis voltar a fazer o dia todo, porque elas eram mais velhas, e comecei a querer dar jantares. Foi quando percebi que estava a abandoná-las e tive que voltar atrás. Há sempre esta balança. As pessoas não podem fazer dois trabalhos bem feitos e eu optei por fazer muito bem feito o de mãe e deixar o de cozinha a meio-termo."
"As pessoas não podem fazer dois trabalhos bem feitos e eu optei por fazer muito bem feito o de mãe e deixar o de cozinha a meio-termo."
Meio a brincar, Anna Lins diz-se pronta para a reforma. Mas, na realidade, tem muito que quer desenvolver. "Vou continuar cada vez mais com a docência porque descobri que tenho muito prazer nisso. Sempre gostei de estudar e dar aulas é uma desculpa esfarrapada para continuar a estudar. Vou investir mais nessa área. Este ano estou a terminar um mestrado em food design. Fazer consultorias também é relevante porque se me afastar muito da prática da restauração não vou ser boa professora, vou parar no tempo e não vou continuar a formar os meus alunos naquilo que está a acontecer. Por isso, vou ter sempre estes dois lados."
MISTURA DE SABORES: "FUSÃO NÃO É CONFUSÃO"
No Restaurante do Museu do Oriente by Imppacto, onde dá consultoria e onde está a formar a chef, Anna Lins pretende "refletir a orientalidade dos sabores". "Tenho muito cuidado com a fusão. Fusão não é confusão. É preciso ter alguma atenção quando tentamos juntar uma série de paladares e tradições alimentares muito diferentes para não ser confuso para o cliente. A escolha que fizemos aqui no restaurante é um menu de degustação que apesar e ir da China, ao Japão, à Tailândia, tem paladares que combinam muito bem uns com os outros e que não se abafam uns aos outros, mas temos de ter cuidado em termos de misturar para não se tornar incompreensível. Como é um espaço [Museu do Oriente] que trabalha muito com a cultura asiática e que vão haver momentos em que trabalham a cultura e as artes da Coreia ou a cultura e as artes da Índia, e aí espero fazer coisas mais específicas. Ao longo do ano de exposições do museu podemos navegar ao longo de várias culturas e vários paladares diferentes." Para a FLASH!, Anna Lins preparou um Tártaro de atum com ovas de salmão.
"Tenho muito cuidado com a fusão. Fusão não é confusão. É preciso ter alguma atenção quando tentamos juntar uma série de paladares e tradições alimentares muito diferentes para não ser confuso para o cliente."
À DESCOBERTA DA ÁSIA NO MARTIM MONIZ
Nesta mistura de sabores e paladares tão diversos, a chef Anna Lins encontra uma ajuda preciosa em lojas de produtos orientais. É o caso do supermercado Chen, no Martim Moniz, em Lisboa. Um espaço que a chef já frequenta há cerca de 15 anos. "É sempre uma aventura, uma novidade. Uma das coisas que me permito cada vez que venho a esta loja é levar um produto que não conheça para exteprimentar. Às vezes corre super bem, outras vezes corre pessimamente mal." Desta vez, escolheu uma massa de beterraba. "No início inventávamos muito com os ingredientes que havia. Nos restaurantes chineses, a comida que servem não é a que se come na China, adaptam. Se não têm couve chinesa fazem com couve lombarda. No início, eu também fazia essa adptação. Com estas lojas consigo ser muito mais real naquilo que consigo servir aos clientes. É um salto qualitativo muito grande", defende.
"Uma das coisas porque gosto de vir aqui é esta quantidade imensa de tofus. Na Ásia o tofu é trabalhado de muitas maneiras. Conseguimos encontrar tofu em folhas, frito, fumado, o que nos dá uma capacidade de fazer pratos completamente diferente. Há cada vez mais pessoas a procurar estas alternativas e a Ásia, como já faz vegetarianismo há muito tempo, tem uma série de alternativas e de ingredientes muito interessantes."
"Na Ásia come-se muitos legumes e os legumes têm uma confeção muito rápida. Esses dois pontos são fundamentais para ser saudável."
Todas as cozinhas "podem ser saudáveis se forem trabalhadas". Mas a asiática tem algumas particularidades que favorecem a bondade daquilo que se come. "Na Ásia come-se muitos legumes e os legumes têm uma confeção muito rápida. Esses dois pontos são fundamentais para ser saudável. Mas também encontramos muita coisa frita. Se optar para comer só os fritos estou a comer mal, se optar para comer uma série de coisas que fazem parte daquele leque de alimentos eu estou a comer bem. Têm coisas muito boas, uma delas é essa que mencionei: o cozinhar, o saltear muito rápido, em que as coisas estão meio cruas, em que não perderam os nutrientes e mantêm as vitaminas. Ao contrário do que encontramos muitas vezes na nossa cultura em que os legumes são demasiado confecionados, demasiado cozidos, ficam todos desprovidos de nutrientes." E muitos dos legumes como o rábano com pele verde, o melão de inverno, a raiz da montanha ou a beringela, mais comprida e macia por dentro, já se cultivam em Portugal. A Ásia continua a ser tão fascinante quanto misteriosa, à espera de ser descoberta, neste caso à mesa, pela mão da chef Anna Lins.