"É menina", ou sobre como a 'sorte' pode ser condicionada à nascença, mesmo nos dias que correm
A narrativa deste livro passa-se nos anos 60, mas é impossível que, de repente, não nos mostre parecenças com a realidade. A história começa no momento em que, numa maternidade em França, a parteira anuncia o sexo do bebé: "É menina!", e esta palavra, que parece tão simples, divide o mundo em dois. A partir daí, e de uma forma magistral, a autora leva-nos à forma com que o artigo definido no final do menin(a) condiciona uma vida inteira.
O livro desperta logo interesse pela premissa. Começa com um acontecimento que, no fundo, define toda a vida como a conhecemos. "É menina", anuncia-se numa maternidade em França, nos anos 60, quando, para além das crenças populares acerca de formatos da barriga ou do tipo de desejos que uma grávida tinha, não havia nada que pudesse indicar com total certeza qual seria o sexo do bebé que iria nascer.
E, claro, à época, esse artigo indicativo do feminino era capaz de resvalar nos piores desgostos. Porque os pais até podiam, depois, acostumar-se à ideia de terem uma menina, mas o que eles queriam, em primeira instância, era um varão, a continuidade da linhagem, as portas que se abriam a um filho, mas estavam vetadas ao género feminino.
A tal menina a que se refere a narrativa é Laurence. Pela altura do nascimento, o pai, que até é médico, acorre à clínica para assistir ao parto. Não é comum na época, as águas eram separadas e dizia-se que eles, os pais, não deviam assistir àquele estado de (des)graça de uma mulher, podiam ficar traumatizados, arruinaria para sempre qualquer relação. Mas o pai de Laurence, imbuído por um pressentimento que não se concretiza, vai porque quer ver chegar o seu rapaz, reserva o champanhe mais caro, prepara a festa: é o segundo filho, desta vez é que é. Quando a parteira anuncia que, afinal, é uma menina, os ânimos esmorecem. Não há risos nem abraços, ele vai-se embora, amuado. É tempo de tentar outra vez...
Em 'Menina, Nome Feminino', Camille Laurens retrata com mestria um tempo que queremos acreditar ser muito diferente daquele em que vivemos, mas que a história nos mostra não ser assim tão distante. Laurence cresce a perceber que ser menina não é, de todo, igual a nascer-se menino, rapaz, e todo o livro explora de fora magistral essa perceção, essa 'sorte' condicionada à nascença, num tempo em que as bebés chegavam ao mundo e eram tarefa das mães, o seu emprego, para que mais elas haveriam de servir?
Os pais eram aquela figura semi-ausente que, de vez em quando, aparecia para fazer umas coceguinhas na bochecha, mas rapidamente ia à sua vida, tinham mais que fazer.
Provavelmente não só sou eu a pensar isto, mas este tipo de livros, que retratam realidades que queremos longínquas, deixam-me por vezes com a sensação de que, afinal, nem tanta coisa mudou.Foi-se mudando, mas no fundo continuamos a viver numa sociedade demasiado patriarcal.
Ainda me lembro de quando, há uns bons 15 anos, no início da minha carreira como jornalista, naquelas entrevistas coletivas, se tinha por hábito perguntar aos recéns-papás famosos: "Então, já trocaram muitas fraldas?", como se fosse um ato heróico, um feito extraordinário. A maioria respondia, timidamente, "apenas algumas", justificando a escassez pela falta de jeito, porque talvez unir dois pontos de uma fralda ou limpar o rabo de um bebé tivesse alguma ciência só compatível com um doutoramento.
Anos depois, a pergunta mudou, era mais uma coisa do género: "então, e ajuda com o bebé?". Lá está, a obrigação em primeira instância é dela, mas o pai de vez em quando até pode dar uma mãozinha.
Só mais recentemente se começou a de uma co-parentalidade, mas não nos enganemos. Apesar daquilo que hoje se exige aos pais (masculino), da envolvência cada vez maior, apesar de se garantir que hoje em dia é 'ela por ela', 'taco a taco', a carga maior continua a estar nas costas de uma mãe: que sabe os remédios que o filho toma e a que horas, que não pergunta 30 vezes qual é o tamanho de fraldas que o bebé usa porque, naturalmente, tem esse número na cabeça, que sabe fazer uma sopa sem questionar outras 30 vezes o parceiro o que é que leva, e podíamos continuar por aí fora.
Ao ler este livro, vencedor do Prémio Femina - e que decidi ler por sugestão da Helena Magalhães, do Bookgang - questionamo-nos também, uma e outra vez, porque é que uma mulher pode até ser muito melhor do que o seu par, mas receberá, por norma, sempre menos do que um homem (Cristina Ferreira é, por exemplo, uma exceção que só confirma a regra) e que não, o feminismo nos dias que correm não é assim tão exagerado quanto pensamos, é importante lembrarmo-nos que lá por uma terra ter sido conquistada, a pulso, não quer dizer que não venha um bando de piratas tentar resgatá-la.
"É menina. Começa com uma palavra, como a luz ou a escuridão. O teu nascimento é semelhante à criação do mundo; há o céu e a há a Terra, uma palavra corta em dois o espaço..."
'Menina, Nome Feminino' é obrigatório. Obrigada à Camille, que o escreveu.