
– Pessoas sempre felizes? Que tristeza, não?
E segue pela rua, com aquele seu ar desprendido, gingão, de quem nada tem a perder – e muito menos a ganhar: "Deus me livre", diria ela, se nos lesse agora.
– Era quase viúva.
– Quase rica – corrigiu ela.
– Fugi a tempo de ter coisas a perder.
Ninguém sabe muito mais do que isso sobre esta mulher que, todos os dias, se deita para dormir naquele local da cidade. Sabe-se ainda que é linda de morrer e que já muitos a quiseram levar para casa. Ela recusou sempre e soube defender-se a preceito: o chefe da esquadra local está sempre com um ou dois polícias de olho, não vá o diabo fazer das suas.
– Balearam-no no coração. Felizmente não tinha.
Ri-se sempre que conta esta história, de amor e de guerra, "perdoem-me a redundância, sim?". Terá sido, em tempos – são alguns os que asseveram conhecer-lhe a cara das revistas da alta sociedade. Ela não comenta e segue em frente, com o seu vestido de marca roçado e sujo e os seus sapatos de salto alto partidos em meio salto ou mais.
– O amor matou-me e depois salvou-me.
Sai-se com esta perante um grupo de turistas que andam por ali, e di-lo em inglês perfeito, para não deixar dúvidas, para que todos saibam que os mendigos deste país são mendigos de categoria, que sabem falar em várias línguas – e sabem pedir em várias línguas.
– Mostrei-lhes simpatia. E o dedo do meio.
Ela é assim mesmo: não teme mostrar o que sente quando sente o que tem de sentir. Por vezes, chateia-se com a falta de chá dos mais jovens, outras vezes chateia-se com a preguiça para viver dos mais velhos. E já foram muitos os que ela salvou com essa sua postura – há até quem diga que o presidente da câmara, ele mesmo, a procura sempre que tem uma grande decisão para tomar, será?
– Todos querem ser ricos. Pobres coitados.
Abominava o dinheiro: era, para si, um ser repelente, abominável. Provavelmente terá tido, na sua vida, experiências que a faziam pensar assim. Certo é que jamais alguém a terá visto mexer em moedas ou notas desde que mora ali, no meio dos que não têm onde morar. Vive da comida e da bebida que lhe dão: "basta-nos comer e beber para sermos felizes, não é?".
– Depois da riqueza só sobram pobres.
E enfia mais um pedaço de pão na boca, enquanto à volta os turistas a olham como se ela fosse uma criatura rara, daquelas que não voltarão a ter a oportunidade de ver. E é.
– Sou genial. Mas os burros desconhecem.
E tu: conheces?
Fosso: s.m. O mesmo que desequilíbrio estável. Só os que não temem o desequilíbrio conseguem equilibrar o mundo.