
- Não acredito em realidades,
disse-lhe ele, com a cabeça encostada ao peito esquerdo dela, precisamente aquele que foi amputado um dia destes,
- Não tem mal, assim estou mais perto do teu coração,
ela sorriu, talvez tivesse pouco tempo de vida mas tinha a vida toda naquele tempo, os braços dele, a liberdade completa de ser amada e de amar completamente,
- Liberdade não é ter jaulas maiores, é não ter jaulas,
não tinham, nunca as tiveram, desde que se encontraram quando era proibido encontrarem-se, a sociedade toda sem poder entendê-los, há que entender que muitas vezes o melhor da vida é o que ninguém entende,
- Bem-vinda ao meu delírio,
ela entrou, ficou, delirou, só há amor quando entramos, ficamos, deliramos, se só entramos e ficamos nunca ficámos afinal, já fomos e ainda nem deliramos, há muito que pode faltar a quem ama mas nunca um delírio compulsivo, uma inexactidão precisa, amar é precisamente o que nos retira a precisão, e de que tanto precisamos,
- Nem sempre acontece o que sonhamos mas nem sempre o que sonhamos é o que queremos viver,
assim foi, nunca sonharam este sonho e vivem-nos sem nunca pisar o chão, como se sentissem abrigados apenas quando não têm abrigo, amar é ainda isso, um desabrigo constante, um quase abismo, ou abismo mesmo, que nunca pára, um absurdo sentido que não tem sentido algum,
- Deixei de combater os meus demónios, agora estamos do mesmo lado,
demónios de amor, quem os não tem?, e há no mundo tanta gente merdavilhosa, tão maravilhosa por fora como cheia de merda por dentro, e não entendemos o que fazemos se ficarmos com essa gente, só com essa gente, mas eles não, eles encontraram-se um ao outro e fugiram, amar é encontrar alguém que nos faz fugir, e assim encontrar,
- Sou um insuficiente emocional,
confessara-lhe ele, ela também, estavam juntos e ficaram juntos, carregados de inexpectativas, sem saberem o que queriam e querendo isso mesmo, minuto a minuto, todos os dias a viver sem amanhã,
- Só chega à mente o que antes passou pelos sentidos,
como este beijo sem roupa, o beijo, não eles, eles continuam vestidos mas o beijo despido, as línguas despidas, a verdade em lágrimas ao centro dos corpos, não se sabe se o corpo dela continuará, não se sabe se os minutos acabam em breve, sabe-se que a felicidade é sobretudo diminuir ao máximo a presença do que nos falta, e nada agora lhes falta,
- Só sei que nada sei,
e basta uma vírgula para o mundo mudar,
- Só, sei que nada sei,
isso todos nós sabemos.
Mudar: v. Aquilo que os coerentes dizem que não se deve fazer; é tempo de coerentemente lhes dizeres, dias após dia, que vão para real meretriz que os deu à luz. Se não é incoerente não é humano. Se amas hoje apenas o que amaste ontem, então de certeza que nunca amaste em dia algum.