
Há algo de estranho na voz do meu pai,
uma queda, talvez, como se doesse a parte de trás das palavras,
gostar de alguém é conhecer-lhe o interior das palavras, não é?, entender o que não se diz,
li ontem num livro que estava pousado na mesa da sala,
a mãe sorri como se chorasse,
amar é também saber que é tão curta a distância entre o sorriso e a lágrima,
a casa cheia parece vazia, tudo se mantém na mesma mas sabe a mofo,
a mentira sabe a mofo, cheira a mofo,
amo-te haja o que houver,
os adultos não dizem com as palavras todas, usam quase-palavras, semi-frases, pedem que a dor doa menos quando as frases duram menos,
amo-te haja o que houver,
o meu pai abraça-me,
o meio dos teus braços é heróico, pai, nele nada me magoa, nada me toca,
o meio do amor é o único lugar do mundo onde nada nos magoa, onde nada nos toca,
só o amor, claro, mas quem nunca se magoou nunca foi gente,
não li num livro mas ouvi numa canção que passou no programa da manhã da rádio, aquele que ouvimos todos juntos a caminho da escola, o pai eufórico com mais um dia e a mãe ainda com o sono nos olhos, a acordar devagar, a sentir devagar,
aqueles senhores todos dizem piadas enlatadas mas às vezes sai uma frase que fica,
a vida é no meio das pessoas enlatadas às vezes encontrar uma pessoa que fica,
está tudo bem, um dia vais entender,
já entendo, mãe, já entendo,
vi o pai a esvaziar o guarda-fatos há bocado,
chorou tanto quando guardou a camisa que tu lhe deste pelo aniversário,
fui eu que escolhi, ele não sabe mas fui eu que a escolhi,
o meu pai tem muita pinta,
digo todos os dias às pessoas do colégio,
o amor tem muita pinta, mãe, e pai,
amar é ter pinta, porque não?,
o silêncio agora dói, e nunca doeu,
o fim do amor acontece no instante em que o silêncio começa a doer,
ama-se o que nos pacifica e o que nos descontrola, nunca o que não faz nada, muito menos o que nos dói pelo que já não é, pelo que já foi,
tudo o que nos magoa é a ausência,
ainda estás, pai,
amo-te,
ainda estás, mãe,
amo-te,
mas ainda não sei entender como vou amar-vos em separado,
somos filhos de um só amor, não é?, como havemos de aprender a separar partes de nós?,
quando for grande quero ser amado,
e amar, como é óbvio,
não posso escolher com quem ficar,
não se escolhe um braço, não se escolhe o melhor ângulo para morrer,
não se escolhe um pai, uma mãe,
quero que sejam felizes, só isso,
eu vou continuar, crescer,
quando for velho quero ter os meus velhos comigo,
e amar, não se já o tinha dito,
é este o amor para sempre que vem nos livros,
qual mais haveria de ser?
Ocaso: s.m. O mesmo que vazio. Deixas de ver quando deixas de sentir.