
De entre todas as virtudes, olhar é a menos apreciada. Raramente se ouve alguém elogiar outro pelo que vê, e no fundo tudo o que faz a diferença é, em primeira instância, ver — o que, esclareça-se desde já, pouco ou nada tem que ver com os olhos. Ver é com a cabeça: é um processo mental. Mais ainda: um processo criativo. A criatividade é, no limite, a capacidade de ver diferente, de ver melhor: de ver a parte de trás (ou de dentro) do que está à frente dos olhos. E é só depois de alguém nos mostrar que viu o que viu que nós, os outros, começamos a vê-lo como se sempre tivesse lá estado. E estava — mas ninguém, a não ser o tal gajo de que agora já todos nos esquecemos, o conseguia ver. Estás a ver onde eu quero chegar?
Quando te abraçava talvez não visse,
amar também é ver,
que aquilo não morria, que algo assim não morre,
só morre o que não se sente, nunca te esqueças disso, eu não esqueci, garanto,
a casa vazia, uma estranha em mim e eu nela,
amar é a ausência de estranheza, tu no outro como em ti, e os silêncios não incomodam, como as palavras não incomodam,
a casa com espaços por preencher, a cozinha onde, a sala onde, o corredor onde,
por onde passo é por onde estás, mesmo que não estejas, e o pior é que não estás mesmo, olho à volta, procuro, pergunto à vizinha,
onde está a minha vida?,
não responde, nem eu, não sei, não posso saber,
onde está a minha vida quando tu não estás?
A geografia é a ciência possível. Inventou-se a localização espacial para justificar o lugar onde estamos, quando o lugar onde estamos nada tem que ver, habitualmente, com a localização espacial onde estamos. Somos pessoas porque conseguimos fugir do corpo, andar para além (e para aquém) dele. Raramente és onde estás. És, isso sim, aquilo que sentes onde estás. Por exemplo agora, em que estás a ler isto aqui e na verdade estás a ler isto aí. Sentes o que te digo?
A perda é uma puta, ficas a saber,
leva-nos o que nos faz sentir tudo, e ainda nos faz sentir mais o que acabámos de perder,
antes este livro era só um livro e agora é o livro que me deste quando,
há tantos quandos em nós quando se perde assim,
lê para continuares, dizias,
e eu continuava, ainda continuo, velha, ainda leio as tuas anotações nos cantos das páginas,
estes escritores deixam sempre palavras por dizer,
e era assim que medias o talento de quem escrevia, pelo número de anotações que te obrigava a fazer,
este gajo é bom, esqueceu-se de escrever tanta coisa, este gajo é bom,
a arte é isso, a vida é isso, vale mais quando diz menos, quando dá mais espaço para que tu o ocupes,
a grande vida, a grande obra, é vazia nos espaços que só quem a visita tem de ocupar,
digo isto tudo só para me convencer, eu sei, não voltas e eu tenho de me convencer de que um dia poderei voltar, sabes que não,
nunca se volta do que nos mudou para sempre,
desta vez tens razão, felizmente é raro,
só tinhas razão sempre,
a cadela procura-te pelo jardim, abana o rabo quando algo teu aparece, e depois as orelhas baixam e geme no fundo,
nunca se volta do que nos mudou para sempre,
a perda é uma puta, ficas a saber,
e agora deixa-me baixar as orelhas um pouco,
e gemer no fundo.
Nus: adj. Aqueles que passam pela vida passando apenas pela vida. Só quem não deixa marca fica sem marcas.