
— Hoje, com a televisão avariada, vamos ter de fazer amor.
— Não sei se estou confortável com esse plano.
Conhecemo-nos quando a verdade se fazia do que queríamos ser, e não do que éramos,
a verdade no fundo pode ser sempre aquilo que queremos ser, eu acredito que sim, tu não?,
alguém é aquilo que crê ser,
nunca o é, quase nunca o é,
é tão difícil sermos o que cremos ser, um muro em redor do espelho, uma mentira feliz,
quem inventou a mentira procurava a felicidade, que mais?,
dizia-te que é possível sermos aquilo que cremos ser, não porque tendemos a aprender, somente porque tendemos a teimar, e de tanto teimarmos que é assim acaba por ser mesmo,
o mundo adapta-se ao que não tem adaptação possível,
o que não tem remédio remediado está, a minha avó no fundo da memória, o meu avô ao fundo da sala, a faca numa mão, uma maça na outra, um guardanapo à volta do pescoço,
existem as memórias para vivermos duas vezes, ou três, as que forem necessárias até que a vida, inteira, se passe no que não acontece.
a infelicidade não é ter memórias tristes, é não as ter,
temos a tarde toda para amar, haja uma cama e a vida acontece,
a cama foi a maior invenção do Homem, dirá qualquer pessoa apaixonada, ou então não está apaixonada coisa nenhuma,
temos a vida inteira pela frente quando estamos voltados para lá, para a frente, o segredo nunca é segredo algum, não existem segredos, só perspectivas insuficientes,
a perfeição é uma insuficiência feliz,
lá fora adolescentes descobrem-se na rua, junto à parede, segredam o que todo o corpo já mostrou,
coloque-se o corpo no banco dos réus e nenhum julgamento acabará sem sentença,
a música serve para enganar, a arte serve para enganar,
para que raios servirá a vida senão para enganar?,
passa-me pela cabeça a primeira vez que te vi chorar,
ninguém aprende a ver quem ama chorar, os teus dedos a limparem uma lágrima que te fiz cair,
que grande filho da puta é aquele que faz chorar quem ama, como se explica isso?,
disse-te o que doeu e doeu sem convite,
a pior dor é a que vem sem convite, a que chega de repente, estamos confortáveis e depois ela,
e depois tu, a tua primeira lágrima, um restaurante apinhado e eu solitário no interior do filho da puta que fui,
desculpa-me mas não estava pronto para ser tão grande, era um minorca antes de ti, um anão insuflado, pensava que acontecia o que me acontecia, que ingénuo,
só acontece o que nos faz acontecer,
um trocadilho e um beijo, passaria a minha vida a fazer trocadilhos para o teu sorriso, esse mesmo, o que fizeste agora,
temos uma cama e uma televisão avariada, e planos para nada fazer para a arranjar, Deus nos livre de uma avaria não servir para amar melhor,
podia escrever-te mais uns milhares de páginas sobre a forma como a tua pele gasta a minha sem nunca a cansar,
não o farei,
tu sabes porquê, ou pelo menos vais saber agora mesmo,
anda cá, vens?
Ocultar: v. Acto de colocar à frente dos olhos aquilo que impede de ver o que pensamos estar a mostrar; a melhor maneira de esconder não é impedir que o vejam — é impedir que o sintam.