
- Nada banaliza mais um humano do que a necessidade de ser diferente. É no que fazes da banalidade que reside o extraordinário.
Era uma vez um homem que sabia melhor quem era à medida em que ia sabendo melhor quem eram aqueles de quem gostava. É no fundo assim que vemos quem somos: quando vemos aqueles de quem gostamos. Amamos o que somos, talvez assim se entenda melhor a lógica disto tudo, por mais que isto tudo não tenha lógica nenhuma.
- Vejo-te para me ver melhor.
Acreditava que ver era um processo emocional, e comprovava-o facilmente: "passo todos os dias na mesma rua e nunca está ninguém naquela rua, mas um dia aquilo faz-me pensar, no outro dia faz-me rir, no outro faz-me chorar, no outro faz-me dançar." O que vemos é o que somos: é o que estamos. Mais ainda: o que estamos a ser. Não existe a vida a acontecer-nos; existe nós a acontecer-nos no meio da vida que nos acontece. Somos prisioneiros de uma espécie de liberdade, de uma espécie de espécie. Isso: somos uma espécie de espécie, pessoas de outras pessoas quaisquer. Amamos para nos suportarmos, e só a ausência de amor nos insuporta. Somos peças instáveis de uma construção ficcional. O que nos faz felizes não existe, e ainda bem. A felicidade é abstracta e concretamente um monte de tretas. Um ser dentro da realidade nunca está fora de si, que tristeza de vida.
- Ser realista é ingénuo, e utópico. Um realista é um sonhador ao contrário: alguém que pensa que só por ser pequeno cabe em si.
Este homem de quem falamos nunca acreditou no que era factual: não domina, sequer, o conceito do que é o existente, o que é o mesmo que dizer que é poeta, o que é o mesmo que dizer que está apaixonado pelo mundo. Estar apaixonado pelo mundo é estar sempre junto ao abismo, no limiar da desilusão. Tem uma profissão das nove às cinco, em que tenta colocar poesia na maneira como lava os pratos do restaurante em que trabalha. Há nele uma esperança sombria, como se conseguisse retirar um verso de onde os outros tiram rotina. Amar é isso: retirar um verso de onde os outros tiram rotina. Amar todos os dias pode cansar quem não ama.
- Magoa-me a necessidade de emoção, e é ela que me suporta.
A vida não lhe foi fácil: perdeu amores, perdeu sonhos, perdeu o que poderia ter sido. É por isso que é o que é. Não tem como ambição sair do restaurante, nem mesmo deixar de lavar pratos: ali consegue pensar, enquanto as mãos, maquinalmente, fazem o trabalho para que é pago. Já pensou em mil e uma maneiras de ser feliz – só hoje, claro. Vai tentar, nas horas que lhe restam, colocar algumas delas em prática, por mais complicado que possa parecer. Para já, sem perder tempo, vai dizer à mulher que ama que a ama, fizéssemos todos isso e esta bodega seria bastante mais habitável.
- Amo-te apesar de seres perfeita.
E ela ri-se quando lê a mensagem entrar-lhe pelo telefone, o paciente com quem está sorri com ela, percebe que foi o amor a entrar por ali, e só se pode sorrir sempre que o amor, nem que por interposta pessoa, nos entra na vida. Esta médica sente-se privilegiada por estar apaixonada, porque raios não estamos todos? Conhecer alguém que ama devia ser motivo para felicidade – e para ele era: um dos passatempos favoritos era sair à rua para ver amor. Andava horas a apreciar quem se amava e não parava de chorar, feliz, ao ver cada casal em beijos, cada mãe a abraçar o filho, cada pai orgulhoso do seu menino, cada avô a celebrar a vida toda nos passos do seu neto. E ele ali, realizado com a realização dos outros. Ficássemos felizes com a felicidade dos outros e nenhum dia haveria sem que a felicidade nos tocasse.
- És a melhor maneira de ser finito.
Escreveu-lhe agora, ela sorriu, o paciente sorriu: amar é um sorriso sem motivo, só isso, e é tudo.
Hábito: s.m. Aquilo que és: somos todos o hábito uns dos outros – o que não quer dizer que tenhamos de ser todos o tédio uns dos outros. Pensa nisso.