
Só são submissos ao destino aqueles que passam a vida a querer fugir dele.
- Eu não fujo de ninguém, ficas desde já a saber, Batman.
O bêbado dizia aquilo ao olhar para a freira à sua frente, naquele fim de tarde de chuva, e toda a gente à volta riu, como se por segundos a vida não tivesse consequências. A vida tem como única consequência acabar; tenta não acabar antes dela.
- Tens a obrigação de não viver como se viver fosse uma obrigação. Noventa por cento do mundo vive como se estivesse a lavar a loiça. E os outros dez por cento são malucos. Agora escolhe.
Desta feita quem passava por ele já não riu tanto. Um homem de pasta na mão e uma corda no pescoço (chamam-lhe gravata, não é?) esboçou, durante dois ou três segundos, um sorriso, mas não aguentou. Metros à frente, protegido pelos óculos de sol, chorou que nem um bebé mimado durante dois minutos e meio. Foram os dois minutos e meio mais felizes do seu dia.
Por mais que não queiras, só és feliz quando deixas de ter medo de sentir. Até lá és uma espécie de animal de zoológico, só isso.
- Eu também já fui um gajo ponderado, mas depressa percebi que era só um gajo acabado. A ponderação que se vá encher de moscas: antes ela do que eu.
Deu mais um golo na garrafa que carrega como se fosse um troféu, sentou-se junto à entrada do banco, empunhando um pequeno cartaz onde se pode ler: "MORGUE".
- Só se morre por medo. Morrem mais pessoas vítimas de empréstimos bancários do que de tiros.
Ninguém lhe ligou muito até que começou a distribuir as dezenas, ou centenas, de notas que trazia na sua mochila suja. Um dos males maiores do mundo é só prestar atenção ao que dá dinheiro.
- Ainda bem que vieram, senhores guardas. Os ladrões estão lá dentro. Apanhem-nos enquanto é tempo.
Não eram, como ele queria, os banqueiros quem a polícia vinha deter; era ele mesmo. Antigamente a polícia prendia os ladrões; agora obedece-lhes.
- Podem pensar que vou preso, mas na verdade vou livre. Podem pensar que têm pena de mim, mas na verdade têm inveja.
Ao entrar no carro, com as mãos algemadas e com muita gente (até aqueles que, sem pestanejar, guardaram sem volta as notas que ele distribuiu há pouco) a olhá-lo, parecia o homem mais feliz do mundo, sorriso descoberto, um olhar aberto, como se a realidade não estivesse a acontecer assim.
O que vivemos é o que sentimos, o resto é engano.
- Culpado – respondeu, quando o juiz lhe perguntou como se declarava perante a acusação de perturbar a ordem pública.
A ordem é o caos razoável, a ditadura aceite e por isso aceitável. A História só lembra quem um dia desrespeitou, lembra-te disso.
- Está livre.
- Eu sei. O senhor é que não, Meritíssimo. Lamento imenso.
E chegou-se ao pé do juiz, puxou-lhe a cabeça para o ombro e quis acarinhá-lo antes que os agentes de segurança chegassem. Não conseguiu. Pouca gente consegue dar carinho antes de chegar a segurança. A esmagadora maioria das felicidades perde-se por uma questão de segurança. Arriscar devia ser uma questão de segurança: homem prevenido sente por meio, ou nem isso.
- Vamos proceder à leitura do testamento.
Falecera há três dias numa esquina qualquer, anónimo como sempre, e só então se percebeu que era o único herdeiro de uma das famílias mais abastadas do país.
"Deixo, por uma questão da mais elementar justiça, toda a minha fortuna aos mais pobres", leu o advogado. "Tudo, então, será doado aos banqueiros."
Gota: s.f. Unidade de medida de quem não ama; a felicidade chega apenas
de enxurrada: grão a grão ninguém enche o papo.