
- Calma, tenho a situação perfeitamente descontrolada.
Respondeu ele quando lhe perguntaram o que raios estava a fazer abraçado a uma desconhecida no meio da rua.
- Sem stress. Eu não sei o que estou a fazer.
Respondeu ela quando lhe perguntaram o que raios estava a fazer abraçada a um desconhecido no meio da rua.
- Vi-a e amei-a, não vejo qual é a dificuldade de entender isto.
Nenhuma; pelo menos não devia ser nenhuma. Ama-se e pronto: que dificuldade terá entender isto? Procura-se, indaga-se, tenta encontrar-se um motivo para o que só existe quando não tem motivo aparente – ou sem ser aparente. Ama-se sem motivo, não vejo qual é a dificuldade de entender isto.
- Acabei de o conhecer e agora conheço-me melhor.
Ela sabe do que está a falar: o amor serve para nos desencontramos do que julgávamos ser nós; o amor é, digamos, uma encontração, e é por isso que é uma perdição. Ninguém sabe como lidar com aquilo com que nunca teve de lidar. O amor ensina, coloca-nos perante novos estádios de nós. Até ao amor, tudo é controlável, tudo é previsível. E agora, quando ele acabou de acontecer, não se sabe o que pode acontecer. Que maravilha, não é?
- Vivemos juntos há três minutos e desde sempre.
O tempo é um constructo racional, e desde logo arcaico. Não se conta o tempo que se ama, apenas se ama o tempo que se ama. Não faltam histórias de pessoas que viveram juntas durante décadas e nunca viveram juntas. Viver junto é amar junto, sentir junto, passar pela vida – pelo tempo, lá está – junto. Em um ou dois minutos pode haver mais amor do que numa vida inteira. Quando fores feliz e conseguires olhar para o relógio para saber durante quanto tempo foste feliz podes ter a certeza de que não estás feliz coisa nenhuma.
- És a dependência mais bonita do mundo.
Tem razão, ela, ao afirmar isto: as dependências tendem a ser coisas horríveis – como seringas ou garrafas de vidro. Esta dependência é interessante: mais de um metro e oitenta de interessante. O amor é a dependência bonita, por mais que os catedráticos da independência digam o contrário. Ou és dependente do amor que amas ou és dependente da independência. Mal por mal prefiro a primeira possibilidade, quanto mais não seja porque tem a faculdade de me oferecer orgasmos – o que, parecendo que não, tem a sua importância. Somos criaturas precisadas umas das outras, é isso o que faz de nós o eu que somos nós, e felizmente somos nós. Ter medo de precisar é ter medo de ser. Preciso de ti, de todos os tis que habitam a minha vida, para me entender melhor: para me precisar melhor. Quem não vê isto não vê nada, ou no mínimo não sente nada.
- Conhecemos o manual do amor saudável, sim. Rasgámo-lo há pouco.
Desta vez foram mesmo os dois que o disseram em uníssono, como se tivessem ensaiado antes – talvez tenham mesmo ensaiado, nunca se sabe. O que se sabe sempre é que é sempre assim: alguns ensinam o amor saudável, outros vivem-no.
Saudável nunca é o que nos faz querer estar vivos. Estamos vivos para sentir o que ninguém recomenda: é a nossa forma de egoísmo e todos somos egoístas do que nos faz bem – é precisamente por isso que o partilhamos com os outros, para que possamos sentir ainda mais fundo, ainda mais longe, num altruísmo egoísta, ou egoísmo altruísta, ou outra coisa qualquer desde que nos contagie, desde que nos asfixie, desde que dê um sentido qualquer ao que, sem isso, sem o que não faz sentido, não tem qualquer sentido. Um beijo de língua no meio da rua, um chocolate carregado de açúcar no meio do dia.
Somos dependentes do que faz mal, e é quem não tem coragem de provar o que faz mal que efectivamente faz mal: faz o mal. Porque fica amargo, frustrado, irrealizado. Necessitamos, aqui e ali, de pisar o risco para estarmos no caminho certo: para sentirmos, até, que existe um caminho certo. Há, amiúde, uma dose elevada de errado em cada momento certo que vives.
- Quando viver vou para o céu.
E foram, e estão.
Habitação: s.f. Espaço que tem a dimensão do que sentes; sem-abrigo é só aquele que não ama.