Vou comprar um cão de loiça e pô-lo na sala, ao lado da lareira, para me lembrar que nunca sais do mesmo lugar. Talvez um Dálmata, por ser magro e elegante, com os olhos juntos e a expressão suplicante, como a sala é toda branca, parece-me a escolha mais feliz. Mas tem de ser grande, nada de miniaturas pindéricas com escala de bibelots. Nunca fui dada a esse tipo de inutilidades que enchem as cristaleiras das casas da velhinhas de Portugal: bailarinas com micro-saias de tule, pajens sempre em posição de semi-vénia, pierrots patéticos de lágrima desenhada na face – um pierrot de loiça não tem cara, tem face – dedais, bules miniatura e claro, cãezinhos de loiça perfilados em matilhas silenciosas e imóveis, conservados pelo vidro biselado, imunes ao tempo, conformados para sempre na sua solidão expositiva.
Quero um cão possante, que chame a atenção assim que alguém transpuser o hall de entrada, cheio de pintas, com as orelhas para baixo, sentado muito direito e com o olhar vítreo – pormenor inevitável já que a loiça decorativa é sempre vidrada -, a espiar-me de relance com o focinho a três quartos, irradiando ao mesmo tempo simpatia e imobilidade, empatia e silêncio, como se isso fosse possível. Não estou a brincar, vou mesmo investigar na net, a minha amiga Margarida que percebe imenso de decoração já me disse que o OLX tem muita oferta disto e de tudo o que se quiser, não vai ser difícil. Vai ser o meu auto-presente da próxima quadra festiva, já que sem crianças em casa fazer a árvore de Natal tornou-se anacrónico e descontextualizado. Ainda me lembro do Lourenço e da Teresinha pequeninos, mergulhados no entusiasmo sazonal a pendurar bolas, estrelas e sinos. A caixa dos enfeites também tinha uns bonecos de pano sensacionais, o Lourenço disse:
- A mãe pendura as bolas e eu penduro os anões.
Nunca me deu para dar crédito a anões nem no jardim nem na vida, sempre fui bastante intolerante a homens de baixa estatura. Às mulheres acho graça, tenho amigas baixinhas e acho-as lindas, mas os exemplares do género masculino querem-se com altura e com porte. Póneis só no circo e mesmo os canídeos de loiça requerem alguma presença, quanto mais não seja física.
Há duas gerações a minha tia-avó Inocência que, apesar de ser excecionalmente bonita, foi solteirona até muito tarde, apresentou-se numa festa de família com um senhor muito bem-posto, de fato bem cortado, gravata de seda, sapato bi-color e chapéu catita que ela apresentou como o Sr. Mena, vizinho do terceiro esquerdo. O Sr. Mena sorria para incessantemente em todas as direções, sem, no entanto, conseguir articular uma frase, como se concordar com o mundo lhe bastasse para e ele pertencer. A minha mãe, mordaz como só ela, passou a referir-se ao namorado da tia como Figura de Corpo Presente.
Durante mais de duas décadas fez jus à classificação, reza a lenda que morreu em silêncio contemplativo, olhando para a minha tia Inocência como quem vai a Florença e se extasia com o David e outras estátuas nas galerias Uffizzi. Talvez admirasse tanto a sua beleza que nem sentisse necessidade de a expressar.
Espero que o mesmo aconteça com o meu cão de loiça. Será dócil e pacífico, não rosnará perante a presença de estranhos, não irá largar pelo nem irá precisar de ser vacinado contra a esgana e a leishmaniose. É certo que não poderei brincar com ele no jardim nem sentirei nenhum conforto em lhe afagar as orelhas, mas acredito que sempre que olhar para ele, estará a olhar para mim com aquela expressão suplicante que só os bichos, as crianças e os homens apaixonados têm. Por acaso os condenados também têm, embora avançar sem hipótese de retorno pelo corredor da morte a caminho da cadeira elétrica cause ao coração mais danos do que acabar uma reunião mais cedo e descer a rua para abraçar uma paixão inconfessável que teima em não se apagar, apesar do silêncio, apesar da vida, apesar de tudo.