'
FLASH!
Verão 2025
Compre aqui em Epaper
Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

Notícia

Eu quero que tu sejas a minha mãe

Vou ali e já venho, não demoro nada, umas semanas, duas ou três, vais ver que passa num instante, digo ao Ramsés enquanto lhe faço festas na cabeça. O Ramsés foi uma herança da minha irmã Isabel que se apaixonou por um surfista e trocou as Avenidas Novas pelo Havai.
16 de fevereiro de 2018 às 11:34
Surfista, praia, ondas
Surfista, praia, ondas

Aconteceu tudo muito depressa, como sempre acontece na vida da Isabel. Um dia quis ter um cão e no dia seguinte já estava o Ramsés lá em casa com brinquedos, LOP, cama e brinquedos para roer. Nunca fui muito dada a animais nem a plantas, tentei ter peixes, mas morriam sempre ao fim de uma ou duas semanas e quanto à flora, nem o manjericão de vaso se aguenta na cozinha, portanto quando percebi que ia ter uma bola de pelo a semear o caos no apartamento ia-me dando uma coisa, mas como a Isabel só faz o que quer, tive de me aguentar.

É muito difícil ser a irmã mais nova da Isabel, porque ela não é só mais velha, também é mais inteligente, mais divertida e mais bonita do que eu. Nem vale a pena entrar numa sala a seguir a ela, porque ninguém me vê. Se chegar antes, tenho direito a alguns minutos de glória, a qual se esfuma assim que a minha irmã avança. Também é mais alta e tem mais formas do que eu. Dizem que somos parecidas, mas só se for uma versão atrasada dela, o que faz sentido porque nasci três anos depois.

A Isabel sempre foi a menina querida dos avós e do meu pai. Não sei se é por ser a mais velha, mas parece que os primeiros recebem mais atenção. A minha mãe trata as duas com igual indiferença. Desde que o meu pai se mudou para casa da tia Laura, passa pouco tempo em Lisboa. A tia Laura era a melhor amiga da minha mãe até o meu pai se apaixonar por ela. Azar dos azares, é a minha madrinha de baptismo. Agora nunca sei se devo ou não manter boas relações com a minha madrinha, porque a minha mãe pode ficar chateada.

No dia em que a bomba explodiu, a Isabel pegou no telefone e disse coisas horríveis à tia Laura. Talvez tivesse razão, eu nunca teria tido a coragem dela. Depois meteu na cabeça que queria um cão porque achava que o bicho podia compensar a minha mãe do grande par de cornos que levara e o resultado não podia ter sido pior: a minha mãe odiou o cachorro e mudou-se praticamente de armas e bagagens para a casa do Alentejo.

Agora o Ramsés já fez um ano e a Isabel conheceu o Derek no bairro alto e perdeu a cabeça. Meteu-se no avião sem data de regresso, deixando-me o cão nos braços. Meti-o mo carro e levei-o para o Alentejo. A minha mãe protestou, disse e a casa não era um canil, mas eu choraminguei e lá aceitou ficar com o bicho.

O Ramsés, que olha sempre para mim sempre com aquela cara que diz eu gostava que tu fosses a minha mãe, deitou-se em frente à porta da rua para não me deixar passar. Tive de abria a porta devagar para sair. Não foi fácil.

Vim para Lisboa a chorar o tempo todo na A2, só parei na fila da ponte porque não gosto que as pessoas me vejam a fungar dentro de um carro, mesmo que não me conheçam. Fui a casa, fiz uma mala pequena e apanhei o avião para Salvador. Se a outra pode ir para o Havai, eu também posso ir para onde me apetecer. Tenho a minha amiga Rita à minha espera, também se fartou da vida lisboeta e foi para lá tomar conta de um resort.

Faço um reset no resort, esqueço as loucuras do meu pai, os caprichos da minha irmã, vou a uma Mãe de Santo e peço que me dê uma vida melhor, sem a sombra da primogénita a pairar-me sobre a vida como um pássaro gigante que faz muito barulho quando bate as asas.

Pode ser que quando volte, já me sinta menos presa ao cão, às Avenidas Novas e à casa da minha infância onde a Isabel sempre foi a rainha. E se ela não voltar do Havai, a rainha vou ser eu.

Leia também
Leia também
Leia também
Leia também
Leia também

você vai gostar de...

Mais notícias de Pessoas Como Nós

A menina Clarinha e eu

A menina Clarinha e eu

Não sei quantas vezes tentei esquecer-te, talvez menos do que tu e mais do que o meu coração aguenta, a única que sinto é que, cada vez que a dou espaço à razão, o meu coração começa a encolher-se como um bolo sem fermento, a vida fica sem açúcar e os dias sem sabor.
Mergulhar no futuro

Mergulhar no futuro

Agora, enquanto a ameaça da pandemia pairar sobre Portugal e o mundo, espero pacientemente por aquele momento mágico em que vou poder voltar a mergulhar no mar. A vida ensinou-me a mergulhar no futuro, mesmo quando o futuro é um lugar vago e incerto.
Com cinco letras apenas

Com cinco letras apenas

É engraçado como as palavras mais belas e mais importantes têm três, quatro ou cinco letras. Mãe, pai, avô, avó, tio, tia, filho, paz, saúde, sonho, amor, fado. Beijo, abraço, toque, sim, não, já, agora, calma, vem, fica.
Claras em Castelo

Claras em Castelo

Estar fechada em casa não me custa, o que me custa é não ver o meu filho e os meus pais, as minhas sobrinhas e os meus irmãos, as minha amigas e amigos. Na verdade, o que me custa ainda mais, é não acreditar que, quando a pandemia passar, as pessoas não vão mudar. Agora acreditam que sim, estão paralisadas pelo medo, mas são apenas boas intenções, porque as pessoas não mudam.

Subscrever Subscreva a newsletter e receba diariamente todas as noticias de forma confortável