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Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

Notícia

Corações de plasticina

Este conto foi escrito para Marta d'Orey, a jovem de 18 anos que precisa de um transplante de pulmão.
15 de janeiro de 2017 às 00:00

Do que tenho mais saudades é de vaguear pela ruas de Londres sem pensar em nada, o ar fresco a entrar-me pelos pulmões, sabia lá eu que não funcionavam grande coisa, nem a dupla pulmonar nem o comandante coração, que rege todo o organismo como um maestro, só que o meu maestro cansou-se depressa demais ninguém sabe bem porquê, embora eu o sinta a bater como um relógio de cuco que está sempre a saltar da janelinha, armado em forte, como eu.

A razão pela qual me armo em forte é porque nem me passa pela cabeça fazer o número da vítima, coitada de mim e tal, que tenho pulmões preguiçosos. Eles não escolheram e eu também não. Na verdade se pensarmos bem são poucas as escolhas que podemos fazer na vida desde o dia em que nascemos, começando pelo próprio. Basta pensar em local, pais, irmãos, primos, cor dos olhos e do cabelo, QI e QE, jeito para isto ou para aquilo, pernas compridas ou curtas, enfim, a lista não acaba, e quanto à minha, posso dizer que em todas essas coisas, mesmo sem escolher, saíram-me as melhores, portanto siga a marinha e unidos venceremos.

Quando fiquei doente ainda não tinha conhecido o homem da minha vida, mas nas muitas noites de hospital, quando o tédio da solidão transformava o meu quarto num deserto de silêncio apenas embalado pelo ronronar da máquina do oxigénio, a minha amiga Ninja M entrava à socapa com guloseimas e histórias da sua vida.

Havia um certo inglês da City a viver mesmo ao lado do 'tube' de South Kensington que lhe roubava temporariamente o coração sempre que ia a Londres, mas no caso dela não era grave porque ao que parece tem um coração de plasticina que aguenta tudo, daí a alcunha de Ninja para os amigos.

Eu morava ali perto, em Chelsea, e sou apaixonada pela cidade: fecho os olhos e vejo as chaminés, as paredes de tijolo, as montras perfeitas e o London Eye ao longe a vigiar-nos como um espião, o mercado de Portobello ao fim de semana onde a Ninja M conseguiu comprar dois casacos de vison pelo preço de um, numa manhã gelada em que fomos as duas passear e rir.

Regressei de repente a Lisboa quando fiquei doente e ela diz que por solidariedade não volta a Londres. "Ele se quiser que me venha cá visitar, afinal os aviões demoram tanto tempo de cá para lá como a fazer o percurso inverso". O gentleman da City nunca veio, e em vez dele apareceu um israelita que ela conheceu no MAAT – e haverá lugar mais in para conhecer estrangeiros do que o MAAT? – que se apaixonou por ela, prolongou a estadia e já cá está há uma semana a fazer-se à pista em terra, como mandam as leis da galanteria.

A minha amiga Ninja M nem consegue processar o que lhe está a acontecer, parece que o tipo em questão é mais giro que o da City e que a quer levar a Tel-Aviv para a apresentar à família, tudo como num conto de fadas, embora eu preferisse que tudo se passasse numa cidade mais próxima e já agora, num país mais pacificado.

Deu-me para contar a história da minha amiga Ninja porque às vezes também penso onde andará o meu príncipe encantado. Nunca fui muito dada a visões românticas da existência, não sofri daquelas paixões de fazer rebentar borboletas na barriga, mas imagino que um dia não vou escapar ao Cupido, porque ninguém lhe, escapa, quer se tenha um coração de plasticina ou de um relógio de cuco.

E cada vez que estamos juntas e ela me faz rir e sonhar com as suas histórias, imagino-me outra vez a passear em King’s Road e a saborear um cappuccino no Bluebird Café, sentada numa mesa junto à fachada envidraçada, a beber a magia da cidade de todas as oportunidades.

Quem sabe na primavera voltamos lá as duas para ela escolher o anel de noivado na Tiffany’s da Sloane Street, ali ao virar da esquina. "Compro o anel, convido o outro para beber um copo no Duke of Clarence. Chego triunfante com um dos meus casacos de peles, começo a falar com as mãos no ar e quero ver quanto tempo demora até me perguntar que cachucho é aquele. Até lhe vai parar o coração", remata a Ninja, perdida de riso.

E eu rio ainda mais porque ela só faz estas piadas porque me adora e tem mais medo que me aconteça alguma coisa do que eu. Quem sabe o que tem, nunca tem medo. O meu cuco cá anda, qualquer dia transmuta-se em plasticina por osmose, ou parecido, porque eu também sou Ninja como ela.

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