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Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

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Modo avião

Não estou a brincar. No México os cães também contemplam o pôr do sol.
24 de janeiro de 2020 às 19:58
Galo, animal, ave
Galo, animal, ave

Só quem nunca viajou pela América Central ou pela América do Sul acredita que o realismo fantástico é uma invenção literária. Não é. É um espelho de uma sociedade mista na qual o catolicismo anda de mãos dadas com crenças ancestrais e a Virgem Mãe é tão levada a sério como Quetzalcóalt, o principal deus da cultura azteca, com corpo humano e uma cabeça que combina um pássaro com uma serpente. É, nem mais nem menos, o deus da vida, da luz, da fertilidade e do conhecimento. E como se não bastasse, é irmão de Vénus, a estrela que antecede e sucede o aparecimento do sol. 

Quem me explicou tudo isto foi Juan, um guia turístico da aldeia de Mazunte, que além de levar as pessoas a ver as baleias e crocodilos, também á advogado. Quando se cruzou comigo ontem à hora do jantar tinha visto 10 crocodilos e feito um divórcio. Foi um dia produtivo, concluiu com um sorriso largo e os olhos brilhantes, nos quais não seria desajuizado adivinhar consumo de substâncias que são mais legais em certos países do que noutros. Aquilo fez-me pensar que a versatilidade é a base do realismo fantástico e serve de bitola para muita coisa na vida.

Ainda em Puerto Escondido, na sua zona mais trendy que dá pelo nome de Puna Zicatela, no mesmo restaurante co-existiam um galo chamado Espírito, um papagaio que respondia por Corazón e um cão a quem deram o nome de Chinelo. A ave em questão era um clássico galaró de crista encarnada e ar arrogante – de repente podia deixar aqui uma lista de ministros bastante parecidos com ele, mas como estou longe não me apetece -, o papagaio era o previsivel papagaio mau, atrevido e ruidoso e o cão, um Retriever blasé e mimado, que pouco ligava quando o chamavam, contrastando com os cães de rua que ao final da tarde se dirigiam para a praia, acompanhando toda a população flutuante da aldeia para ver o pôr-do-sol. 

Não estou a brincar. No México os cães também contemplam o pôr do sol, com a mesma profundidade e nostalgia com que os humanos o fazem, também sonham e também suspiram, a única diferença é que não tiram selfies. 

Podia inventar uma fábula sobre Espírito, Corazón e Chinelo, mas o meu coração em férias está cansado de inventar enredos no papel e na vida. Quando o cansaço nos dá cabo da cabeça a ponto de nos roubar o sono, a alegria e o bem-estar, só conheço um remédio eficaz: comprar um bilhete de avião e entrar em modo avião. O modo avião é das invenções mais geniais que a tecnologia nos pode oferecer. Em modo avião tudo funciona, mas ninguém sabe porque ninguém tem nada a ver com isso. Entrar em modo avião é voltar a ser dono do seu tempo, da sua vida e do seu coração. É ir a zeros e desligar da ficha, comunicando com o mundo exterior apenas o estritamente necessário, já que, mesmo em férias, os nossos pais, os nossos filhos e os nossos melhores amigos querem saber se estamos bem. O resto não interessa, porque à luz da distância tudo se dilui e perde cor, temperatura, textura. À luz da distância tudo perde realismo, ou ganha outro, neste caso o realismo fantástico.

Para quem tem a sorte de possuir tempo e dinheiro suficientes para atravessar o mundo e escolher um destino totalmente desconhecido, recomendo uma mala pequena, um grande livro, pouca internet e muitas horas de sono na praia, ou debaixo de uma generosa ventoinha de teto. A solidão não tem nada a ver com isto. Solidão é estarmos mesmo ao lado de quem amamos e não entanto não chegarmos ao outro coração, que pode não estar em modo avião, mas é bem possível que tenha escolhido o estado de piloto automático. Solidão é o silêncio da casa sem o ruído da chave à porta ao cair da noite e o frio cortante da cama vazia depois do depois. Liberdade é conhecer um papagaio, um galo e um cão. É falar com desconhecidos e fazer novos amigos. A liberdade ainda é um dos maiores antídotos para a solidão, com o sem companhia para ir ver o pôr-do-sol, enquanto Vénus espreita, qual estrela apaixonada que nunca deixa de seguir o seu grande amor.  

Acho que vou ver as baleias, mas já disse ao Juan que crocodilos, nem morta. Fazem-me pensar que o mundo tem criaturas feias e más, e como estou longe e de férias, agora não me apetece. O Chinelo acabou de chegar à praia, vou tirar uma selfie com ele. Espero que não se importe.

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