
Fecho os olhos e vejo o recreio do Colégio de São José com os seus baloiços, escorregas e recantos, as saias da Madre Patrocínio com o terço de contas de madeira dançar em frente aos meus olhos, os aparelhos no ginásio imenso com o palco ao fundo, oiço a voz terrível da Cló, a terrífica professora de ginástica de quem ninguém gostava. Fecho os olhos e vejo o seu fato de treino azul-escuro brilhante, a cara feia e rude, o cabelo curto, cinzento e crespo. Nunca soube se se chamava Clotilde, a minha cabeça ouvia Cló e eu pensava em pão-de-ló, aquele com recheio de doce de ovos de Alfeizerão.
Não visito o meu colégio da infância há mais de 20 anos e lembro-me de tudo: do refeitório com duas portas cheio de janelas, do xadrez estampado nos termos, dos caracóis da Rita B, das suas calças encarnadas à boca-de-sino com bolinhas brancas em estampado azul nos machos em baixo. A Rita tinha uma mãe moderna e um pai galã, de melena e bigode, olhar sedutor e penetrante, e era a miúda mais popular do meu ano. Hoje somos amigas no Facebook e ela sabe que vive no meu coração para sempre.
As memórias são isto, monstros bons e maus que te invadem os dias quando não te consegues concentrar no presente.
Sinto que estou cada dia melhor, vais-me saindo debaixo da pele, o tempo talvez consiga dar um jeito a isto. A ciência aponta o número sete para a renovação celular total, portanto se estiveres sete anos sem me abraçar, talvez eu seja a mesma, apenas com células diferentes, o que não sei se fará de mim a mesma pessoa ou não, porque nunca nos sentimos a mudar, só quem está de fora é que vê, e mesmo assim é melhor que esteja longe e que só nos veja de vez em quando.
Vejo-te sempre ao longe e sempre exausto, a barba cada vez mais branca, mas sei que se entrasses pela porta para me agarrar eu ia ver-te exactamente como há três anos, quando nunca estavas cansado, quando jantávamos fora e nos sentávamos em bancos de jardim. Na verdade o tempo nunca me assustou, acredito que é muito mais cíclico do que linear, as coisas e as pessoas vão e voltam, é a teoria do boomerang, semeia e colherás, nada se perde, tudo se transforma e renova, a não ser quando a morte te leva a tua metade num tempo em que sentes que tinham uma vida inteira para viver. Esta história hoje não é para ti mas para a Rita B, que ainda tem caracóis e com certeza se lembra de mim magra e malandra, de óculos graduados, aparelhos nos dentes e uma vontade incontrolável de inventar histórias.
Tenho a certeza que também se lembra daquela terça-feira em que levei um maço de SG Mentol e pus a turma inteira da segunda classe a fumar na casa de banho. Éramos tão inexperientes que nem sabíamos que era preciso inalar o cigarro para o acender.
Já não me lembro se fui suspensa, talvez a Rita se lembre, tal como não esqueceu o Senhor António, mago e careca, que guiava a camioneta do colégio, beije às riscas verdes. Quando passámos pela mata de Monsanto, não percebíamos o que faziam à beira da estrada aquelas mulheres desgrenhadas, empoleiradas em saltos altos e saias curtas, agarradas à incerteza e a uma carteira de mão barata e gasta como elas, onde talvez guardassem lenços de papel, preservativos e uma arma branca, caso os clientes demonstrassem outras vontades para lá das lúdicas da praxe.
Às vezes acho que o tempo não leva tudo, que é ao contrário: o tempo é um disco rígido sem limite de terabites e a arte de viver está em sabe arrumar as memórias como se tivesses um Ph.D. em Arquivologia. Saber arrumar, sem peso nem culpa, guardar o que vale a pena e mandar para o lixo o que se transformou em lixo.
Sinto inveja das pessoas que possuem coração e memória de hotel, que esquecem com facilidade a paixão, o perfume a laranjas, o toque suave da pele, os beijos imbatíveis em sabor e prazer, as palavras dos outros. Não sei se és dessas pessoas, mas tenho a certeza que a Rita B não é, e por isso hoje as minha palavras vão para ela, onde quer que esteja.
Espero que já consiga estar no presente, porque o passado é um país estranho onde não vive ninguém, e o futuro a Deus pertence.