
Quando a tarde cai em na praia de Ngapali, acendem-se ao fundo as luzes das embarcações de pesca. Antes da noite chegar, lenta e lânguida como uma canção de embalar, são todas douradas. Depois assumem várias cores: amarelo, verde, azul e encarnado, e o mar, que é lindo de dia, também fica lindo à noite, enfeitado para aquela que é a grande festa da vida.
Penteio o cabelo com um pente de madeira comprado na praia onde todos os dias as vendedoras me oferecem bananas e tangerinas quando lhes pago uma ninharia por um coco que bebo o mais lentamente que sei.
Aqui em Ngapali tudo parece feito de propósito para uma pessoa se sentir feliz. Nunca conheci povo mais querido, puro e educado do que o Birmanês. Todos te dizem minglabá assim que se cruzam contigo. Minglabá quer dizer olá. A palavra nunca vem sozinha, traz sempre um sorriso e um olhar onde cabem toda a inocência do mundo.
Myanmar é o novo nome deste país nem sempre bem tratado pelos ingleses. Bastou -me folhear o romance de Orwell "Bhurma Days"para perceber que muita coisa correu mal. Há guerra no Norte do território mas o país é tão imenso e tão diverso que no Sul, na maravilhosa baía de Bengala, só se respira paz e serenidade.
Quem baptizou a praia terá sido um napolitano, quem sabe exilado e roído de saudades da sua terra natal. Não tenho saudades de nada, o tempo e o silêncio apagam tudo, mais o silêncio do que o tempo, estou em crer, mas pode ser que esteja enganada.
Quando cheguei, entre templos restaurados e budas gigantes iluminados com auras eléctricas que piscam em sequências de delírio multicolor, ainda troquei mensagens com o meu melhor amigo, mas agora nem isso me apetece fazer. Não sei quanto tempo viveria deste lado do mundo, só sei que afinal sou muito menos europeia do que pensava
Um dos maiores problemas do ser humano é conceber com demasiada facilidade ideias erradas sobre si mesmo. Os ingleses chamam-lhe misconceptions, eu inventei já há alguns anos uma palavra para isto. São os auto-equivocados. Burros que se acham espertos, tipos sem caráter que se vêm como pessoas de bem, mentirosos que acreditam nas suas próprias patranhas, isto levado a um grau extremo. Também podem ser bonitos que se acham feios, magros que se imaginam gordos, corajosos que vivem com medo, fracos que se julgam heróis e vice-versa. Por exemplo.
Nas sociedades europeias faltam a candura, a ingenuidade, a simplicidade. Podes percorrer uma cidade inteira a pé e ninguém te diz minglabá. Ninguém te diz nada porque está cada um enfiado no seu pequeno mundo a tentar resolver os seus grandes fantasmas.
Não me apetece voltar ao frio do inverno que se sente por dentro e por fora, às minudências passageiras que as pessoas tomam como catástrofes, à expiação das figuras públicas à média de uma por semana nas redes sociais.
Estava a pensar nisto quando recebi um e-mail do meu melhor amigo, talvez o homem em todo o planeta que melhor me conhece, entende e aceita. É um escritor da minha geração e o meu preferido, por nunca se cansar de contar histórias de amor, como eu.
Escreveu um texto para mim. Nunca ninguém me tinha feito isto, nunca um par.
Conta a história de um homem que fugiu de uma mulher para quem não conseguiu ser herói e casou anos mais tarde com a filha de um judeu que salvou de afogamento.
Talvez seja a hora de voltar, ainda que para lhe dar um abraço e ouvir as suas gargalhadas estridentes.
Pedro, tu ias gostar de Nganapli e da beleza intocada das mulheres birmanesas, a tua generosidade e candura nunca foram contaminadas pela Europa.
Continuas o rapaz brilhante e elegante que descobriu antes do mundo que eu ia ser escritora, será sempre assim que viverás no meu coração.
No fundo, a única coisa que importa, é como as pessoas vivem no nosso coração.