
- Aprendi a desligar o corpo porque não tinha outro caminho para alcançar a paz, - disse-me a Joana enquanto metíamos a loiça na máquina depois do jantar.
-E como conseguiste? – Perguntei, dominada pela curiosidade.
A Joana sempre foi das minhas amigas a mais fogosa e a mais simples no que toca à satisfação do desejo. Os pais são dos Açores, veio estudar para Lisboa sozinha. A autonomia desde os 15 anos terá certamente contribuído para a construção dessa liberdade profunda à qual o ser humano tanto anseia conquistar, embora nem sempre a consciência e a moral vigente lhe permitam tais voos. Vivemos no mesmo prédio, quando percebi que estava só, acolhi-a como baby-sitter dos miúdos há décadas e meia e foi assim que cresceu uma amizade como mãe e filha, mas sem peso nem dramas. A Joana, que nunca foi dada a moralismos nem fingimentos púdicos, cresceu e tornou-se mulher nessa liberdade de movimentos e de desejo, plantou em mim a mesma semente, e mesmo quando não consigo ser livre, aprendi a ser leve, como um prisioneiro que aproveita todos os raios de sol enquanto está no pátio.
- Bem, na verdade vou conseguindo. Não é uma realidade estática, é um processo contínuo, talvez nunca completado, entendes? O desejo apanha-nos sempre na curva, como uma música que está a tocar quando ligas o carro que ainda mexe contigo. Podes ouvi-la atá ao fim, ou podes mudar de estação e esvaziar o pensamento na Rádio Oxigénio.
- Sei muito bem do que falas, mas quando isso me acontece, nunca mudo.
Voltámos para a sala a aticei a lareira com mais dois troncos. Às vezes chove durante e Páscoa inteira. Abril tanto pode ter águas mil como dias de sol, mas tem sempre ovos de páscoa e crianças felizes nos jardins à caça dos tesouros forrados as papel metalizado em forma de roedores de orelhas altas. Olho para a janela e vejo os miúdos ainda pequenos de cesto na mão em busca dos tesouros que escondia na véspera, já tarde, de lanterna na mão e lembro as suas expressões de espanto e de felicidade sempre que encontravam um coelhinho ou um ovo. Agora estão aos três na universidade, o mais novo a começar e o mais velho finalista, se ao menos um casasse e me desse netos, talvez fosse tudo diferente. Mas ainda não chegámos lá. A Joana ainda não casou nem teve filhos, vai tendo as suas histórias aqui e ali e já se habituou a ser só. Eu é que não. Mas eu sou da geração acima, casar e ter filhos era não apenas a ordem natural das coisas, era o único caminho possível. Desde então o mundo mudou.
- A grande diferença entre a tua geração e a minha, é que tu ficas a ouvir a música e nós mudamos logo. Uma das razões que nos faz encarar as relações com mais desprendimento, é saber que se não o fizermos, vamos ficar para trás, porque é assim que as coisas são agora. Tudo é mais rápido, mais leve, mais volátil. Imagino que a intensidade é a semelhante, porque a paixão é um estado que nenhuma religião ou cultura conseguiram modificar, mas tudo passa muito depressa e tudo se dilui sem culpa nem medo. Vivemos o presente com menos sonhos de futuro. Com vocês é diferente. Vocês pensam sempre no futuro porque programaram a vida toda assim.
A Joana tem razão. Sou da geração dos planos. Sem planos não há felicidade. Sem planos, nem sequer há realidade.
- O problema é que tudo na vida é feito de ciclos e os planos também chegam ao fim. Eu vivi para ao António e para os miúdos e quando dei por mim, os miúdos estavam crescidos e o meu casamento estava morto. E agora estou aqui contigo a dissertar sobre a vida e a pensar que se não fossem as grandes amizades, a minha vida seria ainda mais nostálgica.
- No fundo somos parecidas, mas eu aprendi a lidar com o desapego muito mais cedo do que tu. O facto de não ter casado nem ter filhos ajudou-me a consolidar esse desapego.
- E o desejo? O Que fazes ao desejo?
- Mudo de estação assim que a música começa. Às vezes procura a companhia de outros homens, outras vezes satisfaço-me sozinha. Mas não volto a abrir a porta a quem me entrou no coração para o deixar em estado de sítio. É como saber que se passar aquela porta, me vai cair um raio em cima, por isso não cruzo a fronteira do desgoverno.
- E quando estás com outros homens, sentes o mesmo?
- Claro que não. Às vezes sinto-me bem, se tivermos empatia fora do quarto. Às vezes percebo que foi um erro e afasto-me. Mas nunca mais senti o mesmo. E tu?
Fiquei em silêncio, perdida nos movimentos alietórios das chamas.
- Eu nem sei o que sinto. Só sei que já não tenho saudades do António. Tenho saudades do tempo em que éramos um casal feliz, mas dele, já não tenho.
- Então se calhar já mudaste de estação dentro da tua cabeça, mesmo que oiças a musica até ao fim. Estás curada. Ainda não percebeste, mas estás curada.
A Joana está certa. Estou mesmo. Nada como ter amigas mais novas, são sempre mais sábias. Sempre, sempre.