
"Tudo o que cala faia mais alto ao coração."
Foi a última mensagem que recebi. A frase é do músico Lenine, não foi a primeira vez que me enviou, quem sabe terá sido a última.
Depois deve ter entrado no primeiro dos três aviões que a levaram para Krabi. Primeiro escala em Instambul, onde o Ocidente e o Oriente se entrelaçam com a beleza e a loucura das paixões clandestinas , depois Bancoque e finalmente a praia de sonho que deixa todos os que a visitam sem respiração.
Nunca fui muito dado a praia. No abstrato a ideia agrada-me, mas não gosto de estar sem fazer nada e detesto a sensação da areia entre os dedos dos pés, portanto acabo por ir o menos possível. Prefiro inventar afazeres, como arranjar as mesas e as cadeiras de madeira que sofrem as agruras do Inverno debaixo do telheiro da casa de praia, cozinhar para os miúdos, grelhar peixe que vou buscar de manhã cedo, depois da corrida pelo passadiço, ao senhor Asdrúbal que me guarda os melhores salmonetes e as melhores postas de garoupa. Às vezes até me aventuro na doçaria do livro do Vitor Sobral só para não ter de enterrar os pés na areia.
Faço sanduíches maravilhosas, personalizadas; o Pedro gosta de frango e detesta alface, a Maria prefere atum e tomate e a mais pequenina, que é a mais parecida comigo, gosta de tudo desde que seja diferente dos irmãos. Catarina, seis anos de alegria e de inteligência, antes de entrar para o primeiro ano já lia histórias aos outros miúdos da Sala dos Golfinhos. Aprendeu sozinha, quase de um dia para o outro, quando demos por isso já lia tudo, um assombro.
Foi a Catarina que roubou o meu coração. Os outros já lá viviam, cada filho é um tesouro divino, uma benção de Deus, mas a pirralha tem qualquer coisa de especial que não consigo explicar.
A Madalena dizia que era por ser a mais nova:
- Somos terríveis, já nascemos com a manha toda, conseguimos dos adultos tudo o que queremos.
A Madalena também é a mais nova de três irmãos. Tropecei nela há três anos numa esplanada aqui na praia e desde esse dia nunca mais deixámos de tropeçar um no outro, de tal forma que a nossa vida se transformou no mais doce dos infernos, até nos consumir por completo.
Foi ideia dela trocar as habituais férias da Páscoa em Tavira pelas ilhas tailandesas, o que me provocou uma enorme sensação de alívio. Ao menos assim não me distraio dos miúdos e posso ir almoçar ao Capelo sem me perder nos seus olhos altamente perigosos, citando o o’Neil de que tanto gostamos.
Antes de a conhecer não lia poesia nem tal me passava pela cabeça, mas as mulheres que são importantes são as que nos mudam por dentro. Com ela mergulhei a fundo no Jorge de Senna, no Drummond de Andrade, no Herberto Helder, no galego Antonio Machado e no Manoel de Barros que dizia, "a vida sem poesia não tem serventia para nada". Dizia o Manoel e dizia a minha miúda, aquela que andei a carregar no coração mais tempo do que a razão manda e o bom senso permite.
Tento não me lembrar dela, há sempre tantas coisas para consertar e os miúdos precisam sempre de atenção, mimos, banhos, trabalhos de férias e beijos e abraços antes de dormir, mas é à noite, quando vou dar uma volta pela vila que a revejo em cada esquina, que dou comigo a pensar no quanto fui feliz nos seus braços e como a fazia voar nos meus.
Se podia ter ficado com ela para sempre é uma pergunta que já teve várias respostas. Acreditei que sim, depois mudei de ideias e esperei que se cansasse. Como isso não aconteceu, fui eu que me cansei.
Krabi é muito longe, as fotos que vai deixando no Instgram são de uma beleza sem par. Ela sorri debaixo de um chapéu de palha, está sempre de óculos escuros, esconde os olhos do mundo que é o que fazem as pessoas que querem esquecer.
Também a quero esquecer, até acho que já consegui. Só espero que ela não se apaixone por um tipo qualquer e troque de vida e de coração. Na verdade era o que eu merecia, mas talvez ela volte, penso eu enquanto dou uma volta pela margem do rio, para apagar tudo o que vivemos, como se isso fosse possível.