
No dia do Pai os manos e eu fomos almoçar todos com ele, sem sequer combinarmos. Como não almoçar com o nosso Pai nesse dia? Tal coisa era impensável, a não ser que algum de nós estivesse fora, o que não aconteceu.
Como ando sempre um bocadinho atrasada com as horas e com a vida, fui a última a chegar. Além dos manos, estavam sentadas à mesa duas adoráveis criaturas pertencentes à terceira geração da família, cada uma mais querida do que a outra, venha a fada Oriana e escolha qual a mais bonita e meiguinha, porque eu não sou capaz.
Assim que cheguei, apercebi-me pelo tom da conversa que o assunto estava a caminhar para o sério. Provavelmente nem sequer era importante, mas o nosso pai de vez em quando ainda gosta de dar solenidade a alguns assuntos que lhe são particularmente chegados; regras de educação e de bons modos, valores morais, comentários despropositados ou barulhos desnecessários, por exemplo.
O meu pai é o maior amante de música que conheço, a sua discoteca de vinil é um primor e de CD’s é uma loucura, talvez por isso deteste tanto o ruído. Nisso somos parecidos. Se passar muito tempo num lugar com muito barulho, começo a enjoar, primeiro levemente e depois profundamente, até não me restar outro caminho senão a da fuga silenciosa seguida de regresso a casa com a maior brevidade possível. Como todos os escritores, sou viciada em silêncio, preciso de pelo menos duas horas desse paliativo por dia, e mesmo assim, parece que nunca é suficiente. O meu pai não é escritor, embora escreva com grande clareza e bastante sensibilidade e nisso também somos parecidos, e somos em tantas que nem ele nem eu sabemos quantas, porque ainda hoje conseguimos descobrir algumas novas.
Voltando ao supracitado encontro de manos na residência dos progenitores, perante o ambiente tenso, decidi imediatamente começar a fazer o que sei melhor: dizer disparates para desviar a conversa. Entrei a pés juntos com perguntas disparadas como balas em todas as direções para provocar a confusão e semear o caos. A minha irmã percebeu imediatamente a minha manobra, seguida pelo meu irmão que alinhou de imediato na tropelia. As miúdas entraram no espírito e de um momento para o outro o meu pai ficou sem contexto para continuar o seu discurso.
Pouco tempo depois, sem razão aparente, iniciou uma espécie de manobra acrobática na sua cadeira de rodas. Primeiro virou-a em ângulo reto em relação à mesa e depois mostrou a intenção de dar a volta por trás da cabeceira onde eu estava sentada. Ora deu-se o caso de estar atrás das minha costas, entre o meu lugar e a janela, um aquecedor a óleo com algum porte no qual o veículo de duas rodas iria embater, portanto aquilo não ia correr bem. E, mais uma vez, sem pensar, como tantas vezes me acontece, perguntei com um grande sorriso:
- Onde é que o pai quer ir com o seu carrinho de choque?
Os risos contidos começaram explodir suavemente em pequenas ondas entre os meus irmãos e as minhas sobrinhas, lembrando aqueles gloriosos tempos em que estávamos os três à mesa quando éramos crianças. Um dizia um disparate qualquer, o outro começava a rir, o terceiro apanhava o mesmo comboio e aquilo ia em crescendo, sem nunca ter fim. Era sempre muito contagioso e incontrolável, nunca sabíamos quando íamos conseguir parar. De repente o tempo recuou quatro décadas. Estávamos outra vez com, 12, 10 e 7 anos um palhaço de serviço com dois cúmplices ou assistentes.
É uma sorte ter uma família assim e quem não tem, deve ter pena. Não sei se pode sofrer de coisas que nunca aconteceram, mas acredito que seja possível. Passada a crise de riso, os meus irmãos ainda murmuravam entre dentes, carrinho de choque, carrinho de choque, e eu via o meu pai a sorrir da piada, derrotado pelo seu palhaço de estimação. Estou em crer que ganhou o dia, e nós também.