
Gosto de acreditar que as grandes amizades são eternas. Na verdade nada é eterno, nem sequer o Universo, para o qual existimos a uma proporção menor do que a de uma formiga para um elefante. Mas a condição humana nunca desiste de tocar a eternidade, por isso existem pintores, músicos, escritores. Por isso existem as grandes amizades.
Quando chego ao restaurante, ele levanta-se, o olhar ansioso e pergunta:
- O que se foi querida? Passa-se alguma coisa?
Há mais de trinta anos que se senta do outro lado da mesa para me ajudar a arrumar a cabeça e a limpar o coração. Podia ser meu irmão e tem o nome próprio mais bonito do mundo cuja sonoridade rima com esse laço fraterno. Também rima com proteção e com coração. Esteve sempre ao meu lado nos momentos mais decisivos da minha vida. Na véspera de apresentar o meu primeiro romance que viria a mudar a minha vida para sempre, ofereceu-me uma caneta linda. Quando abri o presente, disse:
- Tão bonita, prateada!
E ele respondeu com o seu inconfundível sorriso meio trocista:
- Não é prateada, é mesmo de prata.
E foi com essa caneta que dei os meus primeiros autógrafos.
A amizade é isto mesmo: precisas de conversar e amigo que é mesmo amigo está lá para ti. Explico-lhe que não se passa nada, talvez seja esse o problema, os filhos crescem e vão à vida deles, os pais adoecem e precisam de nós, nunca sentimos a idade que temos, respiramos saúde e energia, mas percebemos que vamos tendo cada vez menos paciência para tudo aquilo que não consideramos vital para o nosso equilíbrio: lugares, ideologias, preconceitos, manias dos outros, pessoas sem caráter, pessoas sem princípios, pessoas sem educação, pessoas. Sobram os nossos. Os teus e os meus: filhos, maridos e mulheres, os amigos que sobreviveram a tudo. O resto do mundo é um peso e é sempre difícil, é sempre tudo difícil, tenhas menos ou mais dinheiro, menos ou mais conforto, porque somos uma geração inquieta, que queria tudo, que conseguiu quase tudo e que no fundo não se contenta com nada.
- Somos a geração dos planos. Sem planos não há felicidade. Sem planos nem sequer há realidade.
É a minha voz que oiço, embora não tenha bem a certeza.
- Se calhar foi isso que te faltou. Foste navegando à vista e agora estás cansada.
Ele está certo. Fiz grandes planos para o meu trabalho, para a minha família, para os meus investimentos. Os planos que fiz para o meu coração nunca se cumpriram. E tive-os bem claros durante quase duas décadas. Não se realizaram. Ele está certo: fui navegando à vista, sonhando com ideais eu julgava possíveis e que a vida me mostrou serem inexequíveis. E ainda assim, insisti. Insisti em vez de atirar a toalha para o chão. Perdi energia e sobretudo perdi muito tempo. A energia recupera-se, o tempo é perdido para sempre.
- Então e agora?
- Agora aguentas de boa cara que é o que pessoas como tu e eu fazemos.
Pedi um bolo de chocolate "tipo mousse", segundo a definição da dona do restaurante que também servia às mesas. Gostei da conjugação, se na prática fosse tão boa como parecia na teoria, iria saborear uma sobremesa de excelência. E assim foi: delicioso, sublime, espetacular. Um bolo tipo mousse é o que andamos a fazer às nossas vidas. Queremos e bolo e a mousse fundidos. Queremos o melhor de dois mundos. No mundo mágico da culinária consegue-se quase tudo, no mundo cá fora é que não.