
"Há coisas que se comunicam pelo éter que tudo envolve, como ondas a espalharem-se na superfície de um lago." Li a frase três vezes e depois passei-a à mão para o meu caderno de notas, o clássico Moleskine ressuscitado por Bruce Chatwin, no qual quase todos o escritores e jornalistas são viciados.
A frase é do Pedro Paixão, o escritor mais filósofo da nossa geração, ou o filósofo mais escritor, nunca sei bem, mas como nem ele sabe, não deve ser importante. Há coisas que se comunicam pelo éter, pensei eu de olhos fechados, deitada no sofá da sala com as pernas elevadas por causa do cansaço do voo. Quando demoras vintes horas a regressar a casa e tens de entrar e de sair de vários aviões, percebes que estavas muito longe.
Estar longe não é só um conceito geográfico, também uma construção emocional. Fui viajar porque me sentia longe de mim mesma, ou longe da pessoa que já fora. "Deixe-me ir preciso andar, vou por aí a procurar, rir pra não chorar", como canta a Marisa Monte. Fui e voltei. Fui cansada e voltei renovada, fui triste e voltei pacificada, fui desencantada e voltei fresca. Para lá e para cá, levei um livro comigo, o livro das frases mágicas e sábias como esta.
Quando abri os olhos, a rapariga que estava sentada ao meu lado chorava silenciosamente. À primeira vista nem sequer era fácil de perceber o que se passava. Ela olhava em frente, embora me desse a impressão de que os seus olhos não viam as imagens que passavam no ecrã do seu lugar, o 7B. Estava a passar um filme que eu vira no meu voo de partida, um drama cheio de clichés sobre um menino inglês de classe alta aprisionado numa cadeira de rodas que se apaixona pela enfermeira roliça de faces rosadas e classe social inferior. Trata-se de um filme que puxa a lágrima a qualquer coração mais sensível, mas não era essa a origem do caudal silencioso que escorria em fios de lágrimas pela cara da desconhecida. De perfil não era bonita; tinha duplo queixo, um nariz de papagaio e a pele sulcada com bexigas. Fiquei sem saber o que fazer. Se ainda estivesse na Ásia e se ela fosse asiática, teria imediatamente agarrado na mão dela e perguntado o que se passava. Na Ásia é tudo mais fácil, mais doce, mais simples, mais próximo. Mas era uma ocidental como eu, e no Ocidente falar com estranhos é sinal de imprudência ou de loucura.
Estendi-lhe um lenço de papel. E depois outro. Quando o meu pacote estava acabar, ela virou a cara para o meu lado e vi enfim uns olhos verdes, imensos, que faiscavam de raiva. Eu já tinha visto aquele olhar no espelho. Ela estava num lugar do qual eu tinha conseguido sair.
Pus-me então a adivinhar a sua história. Nunca casara, mas tinha estado noiva. Era americana. Tinha ido viajar com o namorado que a trocara por uma rapariga oriental. Fora tudo muito rápido. Num dia estavam a visitar os templos de Bagan e no dia seguinte ele desapareceu o dia todo. Voltou ao hotel no final da tarde para lhe dizer que estava tudo acabado porque partia nessa noite para Rangoon, a capital de Nyanmar. "Conheci uma pessoa, tudo isto foi um equivoco, espero que te divirtas no resto da viagem".
É claro que só precisei de adivinhar duas ou três coisas, o resto foi ela que me contou. As lágrimas não paravam de cair, mas ela nem soluçava, limitava-se a relatar os factos como se a história tivesse acontecido com outra pessoa.
- É a febre amarela – disse-lhe. Uma amiga américana que reencontrei em Rangoon falara-me nisto, homens ocidentais que se apaixonam por mulheres orientais e largam tudo o que tinham anteriormente.
- Nunca pensei – respondeu ela. – Eu achava que nós eramos felizes. Pode ser que ele mude de ideias – concluiu com um suspiro que parecia carregar toda a tristeza do mundo. A tristeza dela espalhava-se no ar como éter e eu não sabia como mudar o estado das coisas.
Talvez tudo seja contagioso; a alegria, a desgraça, a sorte e o azar, tudo é energia que se propaga. Pegou no iphone e mostrou-me as ultimas fotos que tinham tirado juntos. Engoli em seco. No dia anterior à minha partida cruzara-me com eles num coffee shop da moda em Rangoon. Reparei nele porque entrou de mão dada com uma rapariga oriental muito bonita e passou o almoço a fazer-lhe festas, como se ela fosse um peluche. A alegria de uns é tantas vezes a fonte de tristeza de outros!
Não lhe disse nada. A pouco e pouco o choro acalmou. Não sei quando o sol irá brilhar de novo na cara da miúda trocada. Nunca fui trocada por ninguém, mas acredito que deve doer tanto que uma pessoa pode cegar de raiva e fechar o coração.
Um coração só se fecha quando está todo partido, é obrigado a fechar para obras. E depois abre. Há um tempo para tudo. O meu já está nos acabamentos, qualquer dia fica pronto, como novo.