
"Um dia destes tropeças em alguém e de repente a tua vida muda", disse a Paula enquanto cruzávamos a a Avenida da Liberdade em direção ao Príncipe Real onde agora tudo acontece. Ainda sou do tempo em que não era seguro passear nos jardins de Lisboa depois de escurecer. A cidade, que se sentiu lagarta durante tantos anos, varia agora entre o estado de crisálida sob os tapumes que anunciam a mudança e o esplendor das borboletas enquanto vivem. Os prédios antigos ganham nova vida, as rendas disparam, quem tem bens imobiliários aproveita a onda, quem ainda não comprou casa faz contas à vida. O trânsito é um caos, bares e restaurantes estão cheios, a cidade finalmente fervilha dia e noite como uma grande capital.
A Paula e eu íamos a um bar de tapas ver a bola. Eu não percebo nada de bola, mas como já aprendi a interessar-me por assuntos que me são desconhecidos, achei boa ideia. A Paula é do Benfica desde que se lembra de ser gente e conhece todas as equipas adversárias como a palma da mão. Explica os lances, as táticas e os truques de cada um em campo. Como tenho alguma dificuldade em decorar nomes de pessoas que não conheço, nunca sei se está a falar de um jogador dos leões, dos dragões ou das águias. Na verdade, consigo distinguir pouco mais do que a cor do equipamento, mas isso também é fácil porque não sou daltónica.
O bar estava cheio de gente. Portugueses das duas equipas e estrangeiros a curtir o ambiente fervilhante do novo destino mais 'trendy' da Europa. Pouco tempo depois, chegou o marido da Paula. Casaram há dois meses, depois de seis de namoro.
- Isto depois dos 40, ou pega ou rebenta - explicou-me a minha amiga quando me anunciou o enlace. Deram o nó numa manhã fria de Janeiro, ela de vestido branco com peles ao pescoço e ele fato escuro e gravata da cor do clube que ama.
O jogo foi emocionante, mais pelo ambiente que me contagiou do que pelas habilidades técnicas da malta em campo, porque quem não sabe é como quem não vê e admito que a rapaziada no relvado terá dado tudo, mas como não sou conhecedora, não sei apreciar. Convidaram-me para ir jantar, simpatia que declinei por ausência de fome e vontade de voltar para casa onde o silêncio me envolve como um manto sempre que meto a chave à porta. Durante meses senti-me sufocada por ele, até o domar como um cão de circo e agora sabe-me bem o sossego. Desci a pé em direção ao Chiado, envolta em fachadas de crisálidas e de borboletas, virei à esquerda no Camões e pus o gorro porque pressenti a chegada da chuva.
O que não pressenti foi o teu sorriso imenso e feliz a chocar de frente com o meu na esquina do Elevador da Bica. Quase parei, depois continuei a caminhar, sentindo os teus passos trás dos meus. Desacelerei, como se fosse o vídeo-árbitro para ver tudo em câmara lenta. Queria por tudo no mundo que acertasses o teu passo com o meu para te perguntar como te chamavas. O inevitável aconteceu: perguntei-te se nos conhecíamos, tu sorriste e respondeste:
- Pensei que era uma turista russa. Esse gorro dá-lhe um ar internacional.
- Não estás longe da verdade, muitas vezes sinto-me um turista em Lisboa, a cidade está tão mudada. Podemos tratar-nos por tu?
Parece-me que estávamos os dois a sorrir muito, porque ficámos calados. A chuva começou a cair e saltámos para um Uber que apareceu por magia.
- És mágico?
- Não, mas já fui futebolista, às vezes é parecido. E tu fazes o quê?
- Sou cantora lírica.
- Oh! Nunca fui à opera - disseste abanando a cabeça.
- Deixa lá, eu também não sei nada de futebol.
E foi assim que tudo mudou de repente, numa esquina da cidade da moda onde tudo pode acontecer. "Se tivesse pedido sobremesa, não te teria conhecido", disseste-me já de madrugada, num abraço sem fim.
Desde esse dia nunca pedimos sobremesa, bebemos o café de um só gole e voltamos para casa onde somos felizes.