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Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

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Somos sempre os mesmos 300

O Tinder, essa aplicação que aproxima ainda mais quem já esta na área. Há quem diga que já se casou, que fez amizades para a vida, tanto oiço histórias da carochinha como de engates manhosos. Nunca vou saber como funciona, mas parece que anda meio mundo por ali, a navegar no pastel de nata virtual, à procura de sexo gratuito porque não imagino que marquem encontros para ir ao Arco ver arte contemporânea.
18 de maio de 2018 às 07:00
Príncipe Real, jardim, lisboa
Príncipe Real, jardim, lisboa

- Eu devia ter percebido logo, mas estava distraída. Ou cansada. Ou talvez o cansaço fosse a razão da minha distração. Sim, talvez tenha sido isso.

Seis da tarde, e eu a passear o Faraó no Jardim do Príncipe Real. O calor chegou de repente, o pobre animal corre com um louco atrás dos outros cães, quer brincadeira e companhia, meia hora depois de o soltar regressa ao banco de jardim onde me sento a ler um livro com cara de quem atravessou o Sahara sem camelos nem cantil. Eu faço-lhe uma festa na cabeça e despejo meio litro de água numa malga de plástico antes de voltarmos para casa, porque é sabido que os cães não param quando estão cansados mas quando estão quase a cair para o lado.

Sento-me quase sempre nos mesmo bancos, do lado de trás do jardim. São mais silenciosos e mais frescos. Não me poupo ao rec-rec continuo das rodinhas das malas dos turistas e sou demasiadas vezes importunada para dar indicações de ruas, praças e lugares, mas fazer o quê? Há 500 anos Portugal descobriu o mundo, agora o mundo descobriu Portugal. Foi irreversível naquela época, é irreversível agora. Vamos ter sempre mais turistas, mais hotéis, mais apartamentos de alugues de curta-duração, mas tuk-tuks, mais tudo o que for para eles e menso tudo o que for para nós. Daqui a menos de 5 anos seremos poucos, talvez uns 300 sei lá. Já o escritor Gomes Ferreira dizia que somos sempre os mesmos 300, afinal não a realidade não mude assim tanto.

Sentar-me num banco a ler ou a fingir que leio enquanto o meu perdigueiro português de olhos amendoados e uma invejável coleção de prémios caninos escondidos nos armários da cozinha, faz com que oiça muitas conversas. O problema é serem muito parecidas; patrões injustos, disparidades salariais por causa do género, a parva do mesmo departamento que anda a dormir com o chefe, o caso que desapareceu, os encontros no Tinder, a mulher enganada pel amiga, as cruzes, os bicos de papagaio, a reforma que não chega para os medicamentos, a vida como ela é, com pouco esplendor e bastante tristeza.

Desta vez era uma miúda muito magra, olhos azuis como turmalinas e umas mãos tão belas e brancas que podiam ser de uma escultura. Consolava a amiga com festas no braço e no cabelo enquanto a outro se queixava:

- Eu vi logo que ele era um pirata, nenhum tipo se chega assim à frente como ele, a não ser que vire muitos frangos, mas sabes como é, uma pessoa quer sempre acreditar que as coisas podem correr bem.

De nariz enfiado no livro, queria perguntar o que correu mal, o meu coração inquieto de escritora ia -se enchendo de curiosidade como um balão de ar, e é sabido que por vezes basta um sopro a mais para rebentar.

- Mostra lá outra vez o telefone - disse a chateada à giraça.

- Para quê? Já viste três vezes! Só te estás a massacrar. É a merda do Tinder, os gajos metem-se com tudo o que mexe e dá nisto.

Somos sempre os mesmos 300, o namorado de uma andava de conversa com a outra sem saber que eram amigas. O Tinder, essa aplicação que aproxima ainda mais quem já esta na área. Há quem diga que já se casou, que fez amizades para a vida, tanto oiço histórias da carochinha como de engates manhosos. Nunca vou saber como funciona, nem com uma aram apontada em tais apertos, mas parece que anda meio mundo por ali, a navegar no pastel de nata virtual, à procura de sexo gratuito porque não imagino que marquem encontros para ir ao Arco ver arte contemporânea.

- Se eu fosse ati, não lhe dizia nada. Engoles o sapo e despareces. Bloqueias tudo, telefone, Facebook, instagram, tudo. E esqueces o tipo. Há tantos!

- Sim, mas onde estão?

- Olha em volta, o jardim está cheio de pessoas.

- Pois está. Mas estão todos com a cara colada ao telemóvel.

Voltei a concentrar-me no meu livro. O Faraó voltou exausto, acabara a hora do recreio. Voltei a pôr-lhe a trela e regressei a casa. É sempre melhor ficar sozinha do que aturar cães que correm atrás de tudo o que mexe. Para cão premiado chega-me o Faraó, que não conhece outra dona e somos muito felizes os dois.

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