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Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

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Vestidos compridos e outros fantasmas

O problema com a beleza é que nos tolda em relação à verdadeira essência humana. Nunca ninguém conseguiu provar cientificamente que as pessoas bonitas são boas pessoas. Pelo contrário, a vida vai, não raro, mostrando que o oposto prevalece. Conheço verdadeiros diabretes com cara de anjo, cabelos ondulados à princesa da Disney e sorrisos cândidos próprios de quem não parte um prato.
25 de maio de 2018 às 14:34
varanda, mar, praia,verão, trópicos, palmeira
varanda, mar, praia,verão, trópicos, palmeira

Em dias de chuva fecho-me em casa a empacotar a vida. Daqui a duas semanas deixo para trás o bairro ruidoso e cosmopolita cheio de restaurantes que nunca experimentei a volto para a casa da colina com o mar pintado em todas as janelas e o chilrear dos pardais à solta.

Já vivi naquela casa branca e ampla, enfeitada a relva e cercada por bambus. Enquanto a abandonei, uma das palmeiras não aguentou a praga que assolou o território há uns anos, restou a outra, mais alta e mais elegante. Vive agora sozinha no jardim, rainha e senhora por entre as sebes e algumas plantas rasteiras.

- Sabias que duas palmeiras são o símbolo da felicidade? – disse-me o Eduardo há muitos anos,quando vivi lá pela primeira vez. Eu não sabia. Só sabia que estávamos apaixonados e que podíamos ter casado naquele ano. Depois o Eduardo desistiu, era uma grande mudança e teve medo.  Dois anos mais tarde chegou a dizer-me que ia casar com outra, mas o enlace nunca se deu.

Um dia zangámo-nos e nunca mais falámos. A sua imagem foi-se diluindo como vinho em água até perder nitidez, perfume, temperatura, até perder tudo. E quando mudei de casa o que restava do fantasma do Eduardo ficou naquela casa na qual não entrei durante sete anos.

Esta semana voltei lá para tirar medidas. Preciso de um roupeiro onde possa guardar a minha coleção de casacos de inverno e de vestidos compridos. Gosto muito de usar vestidos compridos porque me sinto tão alta como a palmeira e a altura numa mulher ajuda sempre a atrair os homens mais corajosos e a afastar os mais medrosos. Isto penso eu enquanto rasgo contas antigas e separo em sacos as roupas, botas e sapatos que já não uso para oferecer a quem mais precisa.

Talvez esta ideia seja tão fútil quanto incorreta. Conheço vários homens baixos que são muito corajosos e alguns altos que têm medo de mim. O Alexandre, por exemplo. Era um gigante, mas quando foi mal-educado comigo e levou uma estalada na cara, passou a ter medo do meu feitio intempestivo. Ou o Miguel. Uma vez apanhei-o no Bairro Alto de mão dada com uma miúda, eu tinha 27 anos e ele 38, dei-lhe um encontrão tão grande que tropeçou no seu peso e estatelou-se no chão. No dia seguinte mandou uma dúzia de rosas para o jornal onde eu era editora de sociedade e não descansou enquanto não conseguiu reconquistar o meu coração, ainda que no lugar das amizades castas, que acabam por ser as eternas.

O problema com a beleza é que nos tolda em relação à verdadeira essência humana. Nunca ninguém conseguiu provar cientificamente que as pessoas bonitas são boas pessoas. Pelo contrário, a vida vai, não raro, mostrando que o oposto prevalece. E isto é válido tanto para homens bonitos como para mulheres belas. Os homens bonitos que sabem que são bonitos tiram partido disso, elas então nem se fala. Conheço verdadeiros diabretes com cara de anjo, cabelos ondulados à princesa da Disney e sorrisos cândidos próprios de quem não parte um prato.

- Um prato não, mais vale partir o serviço todo - diz uma delas, a Renata, que foi manequim durante 15 anos e agora consegue ser aquelas coisas todas virtuais, 'blogger, mum, life coacher, opinon maker, fashion addict, personnal shoper, image consultant, trendesetter' e mais uma data de modernices que me passam ao lado. Tanto ruído para nada, e eu aqui a decidir que fotografias deito fora e quais vou rasgar. Rasgo as do Eduardo, guardo as do Miguel e do Alexandre.

Há pessoas que valem a pena ser guardadas, apesar de todas as mudanças, e há outras que não. No fundo nem somos nós que escolhemos, são os outros que acabam por desenhar o seu lugar na nossa vida.

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