Exclusivo: Leia três histórias de amor do novo romance de Eduardo Sá
'Nada no Amor é Por Acaso' chegou às livrarias na quarta-feira, dia 9. É o segundo romance do psicólogo clínico, psicanalista e escritor
Nem uma fotografia sequer
Artur Passarinho era, nos seus sessenta e muitos anos, um velho psiquiatra que, a certa altura, abandonou as pílulas e as trocou por histórias. Nos dias maus, sentia-se Artur Soturnino. Nos outros, dava graças pela forma como vivia das histórias que lhe contavam.
Escutava-as com atenção. E depois corria a escrevinhá-las no seu caderno preto, cheio de gatafunhos. Seria qualquer coisa entre um escutador e um escrevinhador. Que, acima de tudo, amava o lado transparente de uma pessoa, quando pega naquilo que sente e o costura numa história.
Da história dos seus pais não lhe sobraram quaisquer imagens. Há pessoas que têm da infância recordações que lhes chegam pelas fotografias. E há pessoas que têm duas ou três ou
quatro imprecisões que valem por mil fotografias. Mas, da história dos seus pais, não lhe ficaram nem histórias nem fotografias.
E é esquisito que seja assim. Porque parece que eles foram plantados, já crescidos, ali, ao pé de si. E que tudo o que seria a história deles terá começado consigo. É por isso estranho que, da história dos seus pais, não haja uma imagem sequer. Como se fosse um esfregaço embrulhado em pedaços de saudade.
É estranho que a um escutador de histórias faltem histórias.
As histórias são a digestão da memória. Dão-nos lonjura. Transformam as longas planícies dos nossos dias num enredo de sinais, de marcos e de trilhos. Dão caminhos. Azinhagas. Planaltos e avenidas que se espreguiçam. E pistas; muitas pistas. As histórias são enciclopédias que conversam. Viver sem histórias é "passarinhar". Como a sua avó lhe dizia quando ele, depois de um chão estar imaculado, deixava um rasto de pequenos passos. Como se, em vez de vestígios – fundos! –, os seus pés, marcados, se parecessem com as pegadas que os passarinhos deixam no céu. Mas a ele não lhe ficaram memórias suficientes para fazer do futuro um lugar para histórias.
As histórias são fios que se desemaranham de uma meada.
E, talvez porque elas lhe foram faltando, ele foi à sua procura à medida que cresceu. "Há dias – é verdade que sim – em que me sinto um emaranhador de histórias!" Mas esses são os seus dias de Artur Soturnino. Neles, o seu caderno preto sofre uma metamorfose, e de escrevinhador ele passa a agitador. Depois, para. E prende-se num pensamento qualquer. Fecha os olhos, enquanto deixa que o aroma da magnólia se aconchegue
dentro si. E passa de página.
Aos olhos dos doutores que pejavam a drogaria do seu pai, Artur Passarinho fazia parte das pessoas simples. Ignoravam-no, é certo, na maior parte das vezes. E nos momentos em que reparavam nele, achavam-no tão jeitoso com as contas que lhe vaticinavam um futuro radioso. No comércio, claro. Ele dizia que não. Eles riam-se para si mesmos. E repetiam: "Que engraçado!" E ele ficava com a sensação de que condescendiam com a prontidão com que lhes respondia. Porque, no fim, iria acabar assim. Simples. Ele também. Não é que não quisesse continuar a ser jeitoso com as contas da acetona, dos detergentes e do resto que tinha que ver com o seu pai. A verdade é que nunca, como depois de o perder, dera tanta conta da falta que ele lhe fazia. E não encontra, em toda a memória, quando a vasculha, outra pessoa que lhe dê um motivo para se sentir assim, perdidamente, sabendo de antemão que a vida eterna é uma memória de futuro.
Caderno preto, dia tantos do tal
Nas tardes de fevereiro, o aroma das magnólias é intenso. As magnólias recordavam-lhe uma árvore imensa que havia no recreio, quando chegava à escola. Era a árvore debaixo da qual se sentava com o seu pai, inúmeras vezes, a adivinhar os lugares para onde ia cada avião que passava no céu. Perdeu a conta a todas as viagens que fez com ele em cada um que passava.
O dia estava soalheiro. O vento soprava, despenteando-o o tempo todo. Artur Passarinho tinha aproveitado a ausência dos seus dois últimos pacientes e fugido até à sua magnólia. Esticou-se, meio torto, e escrevinhava. Enquanto ficava longe do mundo e o tempo fugia. Por mais que tudo o intrigasse, sossegava-o escrever, à solta, assim, como quem tem alguém sempre ao pé de si, falando com ele sobre todas as coisas. Às vezes, as histórias falam para nós. Segredam-nos ao ouvido. Vão e voltam, como quando viajamos sem destino. O tempo, quando o desmontamos em peças pequenas e soltas, dá ares de ter parecenças com a eternidade.
Foi, então, como se o seu pai lhe falasse ao ouvido, que o caderno preto lhe "disse" assim:
Não te preocupes, Artur! Entre aquilo que sonhas e a vida que vives há um livro. De folhas intermináveis. À tua espera. Que te ensina a viver outras vidas na tua. Mesmo aquelas que podias ter vivido. Todas, sem exceção, são irreversíveis. Todas, quase todas, estão à espera de palavras que as preencham. Tens uma vida inteira de folhas por escrever. Mas, sempre que o abras – numa delas, ao acaso –, fecha os olhos.
O melhor que tu possas! Sente cada folha. Os livros leem-se de olhos fechados. Depois, mal a sintas, lê a resposta que ela leva ao teu encontro. Devagar. O mistério, por mais enigmático que seja o motivo que te tenha levado a procurar uma resposta, acaba aí. Atreve-te!
Se pensas que não podes ser tudo aquilo que sonhares, não te iludas. Nada é suficientemente longe a ponto de ser inacessível. Aliás, não é o longe que mais te assusta. É o tudo que deitaste a perder sem dares por isso. Não te percas, por isso, entre as recordações onde só foste feliz. Lembra-te de que as conquistaste! E que, por isso, tens uma infinidade
de folhas mais onde podes escrever novas lembranças. Escolhe só com quem as queres viver. E adivinha, sobretudo, quem pode dar asas ao teu voar.
A vida traz-nos sempre um novo desafio. E alguma dor. Por mais que te perguntes se merecemos o sofrimento que vivemos, a dúvida maior será se somos merecedores das oportunidades de crescimento que ele nos traz. Se achares que sim, vai! Todos os sonhos são tarde quando fugimos deles. Também o Universo, quando foge da luz, inventa o caos.
Lembra-te: tu és uma biblioteca. Imensa! De livros, muitos deles invisíveis.
Falta-te só ligares à luz.
O diário acabou por ali. Artur Passarinho trocou de página.
Como quem salta entre partes diferentes de si. E tão depressa passa de sindicalista de sentimentos a escrevinhador de pequenos nadas que surripia às histórias que lhe contam. A seguir, depois de os deixar ir levedando dentro de si, faz de apanhador de histórias. As histórias andam pelo ar! Acotovelam-se à nossa frente.
Trata-se simplesmente de se munir do seu camaroeiro de histórias e – zás! – de as apanhar. Uma a uma. Devagar! Foi por se ter tornado apanhador inveterado de histórias que Artur Passarinho, de forma clandestina, decidiu surripiar mais duas. Para construir "a sua". De amor; claro. Porque nada, no amor, é por acaso.
As laranjas são ótimas
Não posso dizer que era uma quarta-feira igual a todas as outras.
Mas tenho a sensação de que não estaria longe disso. Levantei-me, de forma mais ou menos mecânica. E tomei o pequeno-almoço. Engoli um sumo de laranja. Trinquei um pão,
desenxabido, cortado às fatias, que até a própria torradeira pareceu recusar-se a aceitar. Tomei um duche, como todos os dias.
E saí de casa; à pressa. Peguei no Citröen vermelho, que herdei do meu pai. E propus-me a pensar sobre todas as coisas que tornam atarefada a minha cabeça. Mas foi um desastre. Cheguei ao meu gabinete. Mais ou menos desengonçado. Tinha um engenheiro
à porta, que pensa em matar-se. E, a seguir, uns pais encurralados pela loucura da sua filha. Talvez já estivesse mais recomposto.
Entretanto, chegou-me uma mensagem com a conta dos impostos que tinha para pagar. E veio mais uma pessoa. E mais outra. E mais outra. Difícil não é escutar uma pessoa. E isso, sim, já é difícil. Difícil é senti-la dentro de nós. E misturá-la com todas as outras pessoas que depositam os seus dramas e sonhos, os seus apelos, no nosso coração. E que esperam que sejamos mais do que pessoas. Por mais que, todavia, tenhamos "só" os limites (e as
fragilidades) das pessoas.
– Tive tanto medo da ira da minha mãe que, mal vi um saco com comprimidos que tinha guardado, engoli-os de uma vez.
– Acredita que escrevi a primeira carta de amor aos 30 anos?
– Ela mandava-me assim uns olhares e... Pronto. Aconteceu!
– Odeio a pessoa em que me tornei!
– O meu pai, quando lhe pedi que me desse um quarto com janela, ficou pensativo. E depois, com todo o amor, desenhou uma janela no sítio esconso em que eu dormia. E foi assim, sem apanhar ar, que passei a ter uma janela. E a imaginar paisagens e pessoas. Onde só havia uma parede.
– Não aceito que a minha avó tenha morrido. Há muitos anos, eu escrevi-lhe... E pedi, por escrito, que não morresse.
Depois, uma pessoa respira fundo. E já não são as pessoas que se ligam a nós. São as histórias delas que falam com as nossas. E que a todos os momentos nos permitem perceber que, sempre que se escutam no que sentem, se abrem janelas onde havia paredes. Mas senti-las falando em nós cansa. Mais do que parece. Exige que deixemos de ser pessoas e passemos a ser, despojadamente, só o melhor de nós.
– Devia! Aliás, devia estar mesmo destroçada. Feita em fanicos.
Uma sombra daquilo que fui. Nada menos que isso.
(Para, de rompante.)
Precisa de saber o meu nome, não é?… Luísa. Luísa Margarida. E isso pesava-lhe. Talvez por a mãe – ela própria Margarida – ter consigo uma relação tensa, que acabava regularmente com as duas a discutirem. E ela a sugerir que a filha fizesse as malas e saísse de casa, para ir ter com o pai. A nossa casa é o lugar em que habitamos dentro de quem gosta de nós. E, embora os seus pais mantivessem uma cordialidade frágil, Luísa conseguia ter duas casas e ser, ao mesmo tempo, um bocadinho sem-abrigo. "Porque quem não sabe gostar de nós torna-nos hóspedes."Há uma espécie de "mal-olhado" na relação entre as pessoas; muitas vezes. E, não, não é um resquício supersticioso que nos ficou. É mesmo esta sensação de sermos mal olhados, mal conhecidos, que persiste e persiste em muitas relações. O que é mau, de verdade, é o que temos de bom ficar tão contaminado pela maldade das pequenas coisas dos outros que, quando damos por ela, estamos vivos; sim. Todos os dias um pouco mais
velhos; pois. Assustados com isso; um ror de vezes. Mas aceitando "morrer". Como se não pudéssemos pôr garra nas dores e, de verdade em verdade, ficássemos, todos os dias, mais vivos para o amor.
Desde os 13 anos, Luísa foi-se alinhando com dois mundos que coexistiam em tensão permanente um com o outro; e ganhou com isso. Tinha uma parte de si, desamparada, que se adequava aos sonhos que os pais construíam para ela. Por mais que fossem os sonhos deles que, simplesmente, lhe emprestavam. E tinha uma Luísa desafiadora. Rebelde. Agreste. E insolente. Que usava na escola, sobretudo. Duas vidas numa só. Sempre a tentar ser
amada mal resgatava o sonho de um dos pais. Sempre a pisar o risco e a desafiar, clandestinamente, todas as linhas vermelhas que lhe colocavam. E a correr perigos sobre perigos. Como um gato que se equilibra mas não cai.
– Não tinha amigos. Era feia. Repugnante. Tóxica. E gorda, claro.
Uma morta-viva. Fazer-me mal tornava-me viva. Por vezes, cortava-me.
(Reconsidera, mostrando os braços, com cicatrizes.)
Na verdade, muitas vezes. Depois, comecei a pensar no futuro como um vazio. Com ânsia, aflição e desespero. Com ataques de ansiedade sem razão. "Pressinto que vêm lá…". E não conseguia chorar. A minha apatia era um mecanismo de defesa de que não era capaz de sair. Fugir, fugir, fugir... Era isso que eu fazia. Sem, sequer, saber do que fugia.
Aos 18 anos, só para não a ouvirem mais, foi estudar arquitetura para Madrid. Depois passou pela Austrália. Até que se ficou pela Irlanda. Sempre atrás do namorado de cada momento. Todos a parecerem torná-la hóspede do seu amor.
Quando me chegou, Luísa era uma mulher de quarenta e poucos anos; talvez. Com um longo cabelo dourado. Crespo. Olhos luminosos entre o azul e o verde. Uma voz estranhamente quente e cativante. Umas botas altas, castanhas, com umas calças justas por dentro delas. E tensa. Sobretudo, tensa. O tronco era discreto. De tão tolhido, acho eu. Talvez porque trouxesse um camisolão meio tosco, em tons de mostarda, que não condizia, em quase
nada, consigo. É claro que quis saber um pouco mais sobre ela.
– Por onde quer que comece?
(Sorrio.)
– Habitualmente, começamos pelo princípio...
(Pois... E alguma coisa mais inteligente que se diga; não? Há dias em que as primeiras impressões de uma pessoa, dentro de nós, nos turvam as palavras.)
– Diga-me que o defeito é meu, sim?
(Os silêncios de quem escuta são palavras que se adivinham.)
Procurei-o porque me sinto cansada de lutar dentro de mim por uma relação. Deve estar farto de ouvir estas coisas, não é?… Sempre a bater em paredes. É assim que eu me sinto. A querer um colo. Um refúgio. Alguém que cuide de mim. Está a ver? Ao fim de dar tudo... De perdoar tudo... De me sentir pequenina e a ocupar pouco espaço. E, mesmo assim, há sempre uma niquice que nos ataca. E "vamos dar um tempo". "Tu mereces melhor". O costume. E eu encolho-me. E peço desculpa. E há sempre mais um "vamos lá tentar uma última vez". E vou acumulando uma despensa cheia de destroços no meu coração. E, depois, já não é uma
despensa; é uma despensa e uma garagem. E, depois, são destroços por todo o lado. E pronto! Estou aqui. Com um bocadinho de esperança em si. Nem sei porquê.
(Fez uma longa pausa. Olhando o vazio. Depois, lançou-me um olhar desamparado. Lindíssimo!)
É o amor que me estraga. Ou eu – sei lá? – que estrago as relações a que me dou... E, depois, acaba tudo de forma igual. Comigo a escrever longas cartas, falando de um amor moribundo. E já não sei se escrevo a quem desmazela o meu amor. Se falo só para o amor. Escrevo! Sou uma pateta, sabe? Acabo sempre a pedir-lhes, por escrito, que não morram. Mas o amor não morre, não é? Desfalece. O que é pior. Esmorece. Mas não arreda pé.
Naquele dia, justamente naquele dia, o aroma das magnólias não era igual. E quase me doeu arrancar as primeiras letras para as guardar no meu caderno. Luísa deixou-me um rasto de desconforto.
Podem os destroços dos outros tornar-se nossos? Pode um olhar de desamparo prender-nos e chamar-nos para si? Pode um psiquiatra despenteado ter, ainda, coração?