
O autor avisa antes que seja tarde: "O que se segue é uma história de amor", titula em "Preliminares". E é mesmo. Um grande romance de encantamento sem espartilhos nem preconceitos, vivido intensamente por quem escreve, sentido de forma arrebatadora por quem lê. É que, é tudo muito simples, na verdade. É de vida que falamos nesta Crónica de África, de Manuel S. Fonseca (edição Guerra e Paz). De vida com tudo o que tem direito: paixão, intensidade, deslumbramento, frio no estômago, receio, proeza, coragem... tudo aquilo que se pode encontrar, se nos deixarmos levar sem medos, em África. Ontem, como hoje, antes e depois de todas e quaisquer revoluções, na Mãe de todos os continentes que nos ensina a essência da liberdade.
É de liberdade que aqui falamos, inevitavelmente. "Todos queríamos ter pés de ouro, pés que rivalizassem com o perfeito e rematado pé mulato de Eusébio. Jogávamos à bola em qualquer baldio, atrás da Farmácia Luanda, ou no minúsculo terreno em frente à casa da tão bela Ana Maria", conta o autor sobre a sua adolescência lânguida. E explica: "A culpa é da minha infância: Aprendi a deambular como gado transumante por tudo o que podia ler".
Ao longo das páginas do livro, Manuel S. Fonseca faz-nos entrar numa África que já não existe, numa que deixámos para trás e noutra que se mantém intacta. "Nunca mais voltaste, Manel?", quero saber. "Uma vez só...", hesita na resposta - o que não me apanha de surpresa, nem sequer pelo facto de ter trabalhado anos a fio, lado a lado com Emídio Rangel, angolano dos sete costados, defensor da sua terra até ao último dia. "Estou a pensar ir lá qualquer dia".
Não que seja fundamental. As memórias - grande parte delas contadas neste livro - misturam prazer e dor, momentos inocentes com imagens dignas de World Press Photo em todo o seu horror. "Havia sangue no asfalto e cadáveres espalhados pela berma, junto ao mato europeu". É de Godard que fala, não da realidade de Angola onde se encontrava após a independência. "Nesse ano, 1975 dito agora, andava também eu em êxtase revolucionário e independentista. Perdidos no cosmos, como diria Godard, UNITA e MPLA preparavam os dias e as noites das facas longas em que se iriam trucidar fraternal e impiedosamente". E mesmo assim... "O filme Weekend, de Godard, projetava-se no escuro de África, o tutelar Cruzeiro do Sul a preguiçar altíssimo, num céu que os espetadores ignoravam".
E como chegámos aqui, Manel?
Manuel S. Fonseca já viveu várias vidas. A africana - que se calhar ainda vive, mais não seja no que lhe foi deixando e perdurou - e que está contada neste livro, é apenas uma delas. Começou por ser relatada em crónicas e acabou por se transformar em livro, a pedido de muitos leitores viciados. Hoje, Manuel S. Fonseca é editor, da chancela Guerra e Paz. "Não recomendo a ninguém!", diz muito a sério. "O negócio do livro trabalha em escala, por isso uma pequena empresa tem dificuldades em gerir a sua vida" E, na realidade só entrou nisto por paixão, claro. Um gosto que vinha de outra vida, da que viveu na SIC, onde chegou a diretor de Programas e onde , "para me divertir", garante, fundou a Três Sinais, editora "que fazia um livro e meio por ano. Eram edições de luxo, muito cuidadas, com autores e temas escolhidos com cuidado. Publiquei Agustina Bessa-Luís e Jorge de Sena..." e outros. Hoje a Três Sinais é um dos ramos ds Guerra e Paz, a que só nasceu quando saiu da SIC e decidiu que "queria ser dono da minha vida".
Assim aconteceu, com as contingências que ser livre pode trazer: palpitações com o fim do mês, ter de pensar muito bem em modelos e planos de negócio e fazer apostas em autores e coleções. Afinal, não se vive do que se gosta, mas do que é bom para o negócio (também). "Sei que vou morrer editor", afirma do alto dos seus 69 anos, embora hoje tenha a sorte de já ter a filha a trabalhar a seu lado.
Mas antes de ser editor passou pela vida dos filmes e da televisão, não só na SIC, mas também como programador de filmes da RTP2 e, claro, pela longa ligação à cinemateca. Um destes dias o cinema ainda é capaz de valer uma outro livro de crónicas, tal o amor que ainda sente por ele - como fica expresso também nesta obra reveladora da sua personalidade.
É que é preciso voltar atrás e explicar aquilo que quem lê 'Crónica de África' é informado desde logo: Manuel S. Fonseca partiu para Angola aos 5 anos. Foi lá que aprendeu as coisas da escola e de uma infância, a correr pelo mato, a ler em cima de mangueiras, a acreditar que vivia histórias histórias de encantar num filme que era real. "Ora, no bairro de Luanda onde cresci, inter-racial de abrir as moscas a boca de Madame Le Pen, e interclassista de abanar um sindicato casmurro, havia um chimpanzé"... que bebia coca-cola, por exemplo, conta, entre muitas e muitas outras no livro dos prodigios.
"Tudo o que conto na Crónica de África são factos. Aconteceram. Já não sou aquela pessoa, hoje sou aquele que viveu outras coisas e escreveu aquele livro, mas gosto muito da pessoa que ficou lá atrás", relata o autor, que depois voltou a Portugal antes do 25 de abril para estudar Direito. "E dei-me mal. Os únicos assistentes que apanhei com alguma gracinha eram os assistentes Marcelo Rebelo de Sousa e o assistente Jorge Miranda, os outros eram pesados, não tinham nada a ver comigo. Naquela época Lisboa era muito engraçada, de dia era uma coisa, à noite outra, e a da noite era muito mais engraçada". Por isso, tomado, pela ânsia de viver in loco o momento histórico da independência, regressou para ver tudo de perto e mais tarde contar.
Agora, na obra, regressa à África das memórias, nestas histórias hiper-reais que quase parecem ficção por uma questão simples: "Não consigo desligar-me de África. Foi lá a aprendizagem da leitura, de sermos diferentes, dos cheiros, dos sabores, da comida, da sexualidade, da liberdade. Nunca deitarei fora isso". Chega para querer mergulhar nesta viagem dos sentidos, neste grito feliz de liberdade?
Então venha daí. Vai sorrir e surpreender-se ao longo desta narrativa que parece um filme... mas que foi verídica.