
Depois de mais de um ano e meio com as pistas vazias e de portas fechadas as discotecas reabriram no último fim de semana, a 1 de outubro. José (Zé) Gouveia, presidente da Associação Nacional de Discotecas, está satisfeito com este passo contudo diz que se perdeu uma oportunidade de ouro para reabrir portas com novas regras e com o glamour de outrora. Atual diretor de operações do grupo Fullest, o empresário de 47 anos, que já passou pelos mais emblemáticos espaços nocturnos de Lisboa, esteve à conversa com a FLASH! e deixa alguns avisos para o futuro. Até porque há muitos empresários que ainda podem vir a precisar de apoios do Governo para resistir.
As portas das discotecas reabriram a 1 de outubro, o que mudou?
A sensação que me dá, do que tenho visto de Norte a Sul, com vídeos que me chegaram e aquilo que vejo dos ambientes e da música que toca é que de facto, os empresários, os operadores desta indústria não aproveitaram o tempo que estiveram fechados para se aperfeiçoarem, para criarem novos conceitos, para pensarem um pouco naquilo que estava a ser mal feito e que precisava de ser corrigido.
E acredita que isso acontece porquê? Pela necessidade de ganharem dinheiro?
A noite não é só um negócio. Sempre foi feita por homens que tinham um amor e uma paixão por esta indústria. Lembro nomes como o Manuel Reis, o Pedro Luz, com quem trabalhei durante muitos anos, o Raúl Rodrigues, o Liberto Mealha no Algarve, ou o Betuxo no Porto, ou o José Manuel Trigo também foram os nossos mentores. Foram também meus mentores e tinham uma paixão pela noite que hoje não vejo. Hoje vejo muito a vertente negócio e falta um pouco disso, porque quando nós não colocamos o nosso amor e a nossa paixão nas coisas que fazemos, as coisas não têm brilho e a noite vive muito do brilho.
"Quem nunca teve a sua roupa de sair à noite que atire a primeira
pedra!"
Fala em maus vícios. Que maus vícios são esses a que se refere?
Quando atravessamos aquela crise, sobretudo entre 2008 e 2015, por necessidade é evidente, abrimos um pouco a porta e quando digo que abrimos um pouco a porta significa que permitimos que as pessoas entrassem dentro dos espaços noturnos de forma que não entravam no passado. A indumentária, que é aquilo que mais prezo, não era a mais apropriada. Não querendo parecer muito antigo ainda sou do tempo em que o sapato era obrigatório, a camisa, e nós fomos relaxando. O ténis porque era de moda e é, mas depois foi o calção, a t-shirt e depois já não se sabe o que é uma coisa e o que é a outra, portanto aquele ritual que existia das pessoas se prepararem para sair à noite acabou. Quem nunca teve a sua camisa de sair à noite ou o seu vestido, no caso das mulheres, de sair à noite? Quem nunca teve a sua roupa de sair à noite que atire a primeira pedra! Todos nós tivemos aquele cuidado.
Acha que hoje já ninguém se arranja para sair à noite?
É uma minoria e se nós nos preocuparmos com a apresentação e tivermos um cuidado grande com aquilo que vamos vestir à noite e depois chegamos um sitio em que ninguém está ao nosso nível nós sentimo-nos mal e isto é um mau vício que se vai passando para as outras pessoas, porque no dia a seguir o que vou pensar é que vou um bocadinho mais descontraído para me intrusar.
Esse é um dos rituais que a noite perdeu?
Sim! O outro tem a ver com a música. Acho que hoje em dia a música é demasiado transversal. Entramos em dois ou três espaços em Lisboa e ouvimos exatamente a mesma música. Salvo raras exceções de clubes dedicados, como o caso do Plateau que é dedicado ao rock, pop rock, ou uma outra casa que é mais 'house music'. De resto é tudo uma linha muito comercial, mas um mau comercial, com uma música latina muito má. Fomos buscar o que de pior se produz no Brasil, o que de pior se produz na América Latina, e a noite sempre teve a capacidade de educar também um bocado o ouvido das pessoas. Inaugurei muitas casas, durante os 30 anos que estive ligado à noite diretamente e na altura em que isto não era tão global como hoje é, nós íamos comprar música lá fora. Ainda me lembro do Indochina ser inaugurado e dos disco jockey's irem comprar música a Londres. Era uma prática usual trazerem música que não tocava cá. Educávamos os ouvidos das pessoas e as pessoas gostavam. Estávamos um passo à frente, hoje não. Hoje entramos num sítio e corremos o risco de ir a três discotecas em Lisboa e ouvir a mesma música nas três. Sendo que a música para além disso é de fraca qualidade .
"Ainda me lembro do Indochina ser inaugurado e dos disco jockey's irem comprar música a Londres."
Já percebi que apostava num porteiro exigente mas que é que mudava mais?
Se nós de raiz, nesta mudança, criássemos estas regras de que as pessoas para entrarem, fosse em que sítio fosse, tinham que se apresentar de determinada forma acho que a noite podia voltar a ter aquele glamour que as pessoas tanto ambicionam. Tem que haver coragem muitas vezes de demonstrar que as pessoas não se importam de pagar quando sentem que há qualidade e a qualidade está em tudo. Está no ambiente, na música, está no conforto que oferecemos às pessoas, na qualidade, está nas decorações das casas. Tive a sorte de trabalhar com o Pedro Luz que era exímio nas decorações das suas casas. Quem não se lembra do Alcântara Mar, do Plateau, do Dock’s, do Indochina, do Gringo’s na 24 de julho. Casas emblemáticas muito pela sua decoração. Foi uma pessoa muito à frente no seu tempo e as pessoas ansiavam para que o Pedro Luz abrisse uma casa nova para ver que magia é que ele tinha feito e de facto acho que há muita gente que sente saudade desses tempos. Eu sei que para a geração atual é bom, mas para nós não é, porque eles não conheceram melhor e é pena. O último trabalho que tive na noite foi no Jncquoi Club, era um projeto em que acreditava e onde tive a oportunidade fantástica de trabalhar com o Miguel Guedes de Sousa e com a Paula Amorim. Pela primeira vez ofereci-me para trabalhar num projeto e tive essa oportunidade de trabalhar com eles e lá havia esse cuidado. É uma casa lindíssima, onde há preocupação com tudo, com a música, e as pessoas sentem isso e apreciam. Temos de dar um passo atrás, estou ainda confiante de que irão abrir casas com esse paradigma. Tenho essa confiança.
Tem saudades de trabalhar na noite?
Muitos falam do bichinho que fica dentro de nós e por isso é que continuo a defender a noite como presidente da Associação de Discotecas Nacional e continuo a representar a noite. Só voltaria para a noite para um projeto, como voltei para o Jncquoi Club, com o qual me identificasse e onde percebesse que ali iríamos estar a oferecer a qualidade que defendo.
"Não saio à noite (...) Acho que me sinto deslocado em todo o lado que vou"
E onde vai quando quer sair à noite?
Não vou (risos) Não saio à noite. Acompanho a noite um pouco de forma remota mas não vou. Não há nenhum sítio em Lisboa hoje onde sinta que faça parte. Acho que me sinto deslocado em todo o lado que vou.
O CORAÇÃO GRANDE DO CHEF LJUBOMIR Não estarão apenas os empresários interessados em ter o maior número de pessoas possível a cada noite para ganhar o mais rapidamente possível deixando outras coisas para trás?
Entendo esse pensamento e como é evidente toda a gente tem que fazer pela vida, mas também é certo que é uma receita que não funciona. Pode funcionar a curto prazo mas a médio, longo prazo eles vão perder os clientes. Sei de um projeto que vai abrir em Lisboa, ainda esta semana, de que estou convicto de que fará diferença e nesse estarei presente pelo menos para assistir à inauguração.
Que se chama?
É o novo Lust in Rio e espero que, por exemplo o Plateau regresse. Mas entendo a parte financeira sem dúvida alguma, contudo é preciso entender que hoje temos um público muito mais exigente, temos um público com mais Mundo, um público que viaja, que vai lá fora, que conhece e que depois quando chega cá sente-se defraudado. É curioso como hoje temos restaurantes tão bons, com tanta pompa e circunstância. A restauração está tão à frente.
"Já se começa a tocar música nos restaurantes e a restauração acaba
por ganhar um cliente que não é deles"
E depois a noite não acompanha?
E a noite não está acompanhar. Se falarmos em espaços como o Seen, o Sem Maneiras ou como o Jncquoi ou o Otro são espaços de restauração ou mesmo dentro da nossa cadeia, o Bellalisa. Antigamente saía de um restaurante que era normalíssimo para uma discoteca que me fazia brilhar os olhos, hoje estou num restaurante que me faz brilhar os olhos e entro dentro de uma discoteca que é normalíssima e essa impressão faz com que as pessoas prefiram ficar no restaurante. Já se começa a tocar música nos restaurantes e a restauração acaba por ganhar um cliente que não é deles.
Durante a pandemia integrou o Movimento Pão e Água a par com outros empresários, nomeadamente o chefe Ljubomir Stanisic. Esse movimento continua?
Entrei para esse movimento como presidente da Associação de Discotecas Nacional, o Lubo a representar a restauração e o grupo continua. Nós continuamos juntos. Cada um a defender os seus interesses nas suas áreas. Contudo as pessoas não perceberam a dimensão daquilo que conseguimos modificar nesta pandemia, nomeadamente ao nível dos apoios e da forma como o Governo estava gerir esta crise. A maneira como conseguimos que o Governo olhasse para nós valeu todo o esforço de sete dias a fazer greve de fome. Pena é que daquilo que observámos, e por isso é que também nos resguardamos um bocado, foi o tratamento que recebemos através das redes sociais, de alguns comentários que vimos, de pessoas que não entenderam nada do que se passou, não entenderam nada daquilo que atingimos e isso entristeceu-nos e desanimou-nos mas continuamos na sombra a fazer aquilo que pudemos. Não nos devemos esquecer o quão difícil foi chegar aqui, à abertura da porta das discotecas, foi uma luta que durou 18 meses e para a qual nunca baixei os braços, assim como outros membros da associação. Continuamos também a vertente solidária. Há muita gente que continua a recorrer a nós para pedir apoios e ajuda. E nisso o chefe Ljubomir tem sido incansável e continua a ser. É uma grande figura, não conheço ninguém, há muito tempo, com o tamanho do coração que ele tem.
Há muitos empresários da noite que ficaram pelo caminho?
Infelizmente há. Nós tínhamos um cálculo de que cerca de 60% das empresas que estavam ligadas à noite fechariam durante esta pandemia.
OS EMPRESÁRIOS DA NOITE E AS AUTARQUIAS
Para sempre?
Não conseguiram reabrir portas e ainda se vai dar o caso de outras tantas não conseguirem sobreviver, porque vai ser uma abertura muito lenta. Um regresso muito lento. No primeiro fim de semana houve realmente uma ‘revenge’ porque havia muita gente sedenta de voltar à noite, mas a partir daqui, quando as coisas começarem a normalizar, quando os espaços abrirem todos - que ainda não abriram -, não vai haver gente para todos. E temo que se o Governo não as apoiar muitas dessas empresas terão aquilo que se pode chamar uma morte na praia, porque infelizmente irão morrer depois de tanta espera e de conseguirem reabrir novamente.
O que falta fazer pela noite em Portugal?
Uma das últimas frases que vão marcar o mandato de Fernando Medina que agora termina, foi de facto ele ter reconhecido que as discotecas conseguem controlar a noite, no sentido de dar segurança à noite. E foi algo que me tocou bastante, porque tínhamos assistido a imagens terríveis em Santos e na Rua de S. Paulo no Cais do Sodré que obrigaram o presidente da câmara a assumir realmente a importância do papel das discotecas na noite. Porque a diversão noturna nunca vai deixar de existir, seja no meio da rua, seja em casa das pessoas, seja onde for, porque as as pessoas vão querer continuar a divertir-se porque trabalham durante o dia e à noite precisam de momentos de lazer, é a sua válvula de escape. E acho que o Governo deveria olhar para esta indústria com mais atenção e o poder local também. Nós estamos disponíveis, aliás já me disponibilizei ao novo presidente da câmara, Carlos Moedas, com quem tive a oportunidade de conversar durante a campanha eleitoral. Estamos disponíveis para criar novas ideias. Não foram só os empresários que perderam uma oportunidade de ouro de melhorar tudo isto, o próprio Governo, o poder local também perdeu uma oportunidade de ouro de voltar a reabrir a noite de uma forma muito mais regulamentada, de uma forma mais reabilitada e não o fez e foi pena. E depois aquela velha questão, tantas vezes falada, como é a questão da segurança. Nós tratamos dos nossos clientes dentro das discotecas, mas fora tem de ser sempre a polícia e as entidades competentes.
Devia haver uma maior ligação entre as autarquias, os espaços noturnos e as forças de segurança pública?
Sem dúvida alguma. Tem de haver um mediador entre a noite e o poder local e todas as entidades como as forças de segurança, porque muitas vezes a noite é marginalizada sem sentido nenhum. Nós contribuímos para tantas áreas do nosso país, nomeademente para o turismo. Ainda há dois ou três anos a CNN trazia uma reportagem sobre Lisboa e dizia que a capital era 'cool' exatamente pela noite que tinha e aos poucos e poucos vamos destruindo um Bairro Alto, vamos destruindo um Cais do Sodré, uma 24 de julho que hoje é uma pálida imagem daquilo que foi na década de 90 e no início de 2000 e vai-se apagando esta noite que tanto deu ao nosso país e que tanta gente chamou. Há uma sondagem à boca do aeroporto onde o turista, quando fala em Portugal, fala do clima, da gastronomia e da vida noturna e da forma como estamos a caminhar a gastronomia também já não é o que era. Embora ao nível do 'fine dining' existam excelentes restaurantes, ao nível da comida tradicional já são poucos, o clima felizmente é deixá-lo assim como está – estamos a meio de outubro com temperaturas tão boas – e esperava também que não mexessem na noite. Que a noite realmente tivesse o seu papel salvaguardado.