Nunca o voto feminino teve tanto peso nas eleições presidenciais brasileiras como este ano. Faltando menos de um mês para a primeira volta, a disputa está cada vez mais centrada em temas como o machismo e a misoginia por causa dos ataques do presidente Jair Bolsonaro. Também nunca houve tantas mulheres candidatas à Presidência. Num país em que 53% dos eleitores são mulheres, 82 milhões ao todo, pela primeira vez em 33 anos há quatro candidatas na disputa pela principal cadeira do Palácio do Planalto: Vera Lúcia (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados), Sofia Manzano (Partido Comunista Brasileiro), Simone Tebet (Movimento Democrático Brasileiro) e Soraya Thronicke (União Brasil).
Se não tinha conhecimento dos dois primeiros nomes daquela lista, não pense que está desinformado. Os candidatos Jair Bolsonaro (Partido Liberal) e Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores) concentram a esmagadora maioria da intenção de votos. Uma pesquisa da Quaest divulgada esta quarta-feira, 7, pela imprensa brasileira revelou que o ex-presidente tem 46% das intenções de voto, contra 34% de Bolsonaro. Em terceiro lugar estão Ciro Gomes (Partido Democrático Trabalhista) e Simone Tebet, empatados com 7% e 4%, respectivamente. Os outros candidatos variam de 0% a 1% ou nem pontuam.
UMA DELAS SERÁ PRIMEIRA-DAMA
Apesar do número recorde de candidatas mulheres, o que está a chamar atenção na campanha é mesmo o papel das companheiras dos dois principais candidatos, Michelle Bolsonaro e Rosângela (Janja) da Silva. Uma das duas será (ou vai continuar a ser) primeira-dama do Brasil, um lugar que não tem nenhuma função administrativa no governo, nem remuneração, e que está ligado a uma tradição de "assistencialismo" e trabalho voluntário em causas de solidariedade.
Mas por quê as duas mulheres estão a assumir protagonismo e uma agenda própria na campanha eleitoral? Os ataques de Jair Bolsonaro contra as mulheres marcam fortemente as respostas de Janja e de Michelle.
Só para exemplos recentes, no primeiro debate dos candidatos na televisão, Jair Bolsonaro atacou a jornalista Vera Magalhães por ter feito uma pergunta sobre as desinformações no período de vacinação contra a covid-19, esquivando-se também de responder à questão. Esta semana, o presidente atacou a jornalista Amanda Klein numa entrevista à rádio Jovem Pan (veículo conhecido pela proximidade aos bolsonaristas) por ela ter feito uma pergunta sobre um alegado esquema de corrupção da família de Bolsonaro na compra de imóveis. E no discurso sobre os 200 anos de independência do Brasil, que foi transformado num comício, Bolsonaro comparou Janja e Michelle: "Podemos fazer várias comparações, até entre as primeiras-damas, não há o que discutir. Uma mulher de deus, família e ativa na minha vida".
Uma pesquisa do Centro Feminista de Estudos e Assessoria revelou que neste ano de eleições as mulheres estão interessadas em trabalho, rendimento, creches e estão preocupadas com a inflação e a perda do poder de compra, noticiou o podcast 'O Assunto'. É assim que Janja e Michelle tentam falar com estas eleitoras.
ELEIÇÕES PARA A PRIMEIRA-DAMA
Michelle Bolsonaro passou por Brasília de forma discreta, sendo poucas vezes tema para a imprensa. Na tomada de posse, em 2019, chamou atenção por ser a primeira primeira-dama a fazer um discurso naquela cerimónia, que ela escolheu fazer em linguagem gestual. Depois daquele momento de protagonismo, pouco se falou de Michelle, de 40 anos.
Mas este ano, a terceira mulher de Bolsonaro voltou a aparecer com todas as armas. Em julho, Michelle discursou por cerca de 12 minutos no evento de apresentação da candidatura de Jair Bolsonaro, um discurso em que chama atenção a sua retórica em comparação com a do marido.
Mais recentemente, a primeira-dama fez a sua estreia num vídeo para o horário eleitoral obrigatório na televisão. Michelle escolheu um tema sensível ao Partido dos Trabalhadores, a transposição do rio São Francisco, no nordeste, obra que leva água a regiões secas do Brasil e continuou no governo bolsonarista mas que só foi iniciada por Lula, apesar de vários políticos passarem décadas a usar o tema como promessa em tempos de eleições.
A estreia da primeira-dama em campanha não podia acontecer sem polémica. O vídeo em questão foi suspenso por ter um tempo superior ao permitido por lei.
Do outro lado, Janja da Silva respondeu a aquele vídeo de Michelle chamando de "cara de pau" por ela ter escolhido justamente o tema da transposição do rio São Francisco.
Janja também teve os seus segundos de fama. No seu vídeo, a socióloga de 56 anos fala nas "mulheres endividadas para poder levar alimentos para suas famílias", em "segurança alimentar" e em "mães que perderam casas".
Para a imprensa brasileira a influência de Janja vai para lá das câmaras. A socióloga tem coordenado uma agenda própria para discursos sobre segurança alimentar e violência doméstica. E, apesar de não ter um cargo executivo dentro do PT, Janja participa nas reuniões da campanha ao lado dos líderes dos partidos que integram a nova aliança política de Lula, segundo 'O Globo'.
A agenda de Lula também depende do olhar de Janja, que supervisiona as atividades do marido para garantir que ele descansa entre eventos.
A 'Gazeta do Povo' também conta uma espécie de atrito entre Janja e a campanha de Lula. A equipa teria concordado em não cair em "provocações dos adversários", mas um dia depois desta decisão, a mulher de Lula respondeu a um tweet de Michelle Bolsonaro. A primeira-dama tentou associar o candidato do PT e as religiões afro-brasileiras a "trevas" e Janja respondeu: "Eu aprendi que Deus é sinónimo de amor, compaixão e, sobretudo, de paz e de respeito. Não importa qual a religião e qual o credo".
Também será de Janja a ideia de levar mais artistas e influenciadores digitais à campanha de Lula, uma estratégia que convenceu Anitta e toda a máquina de marketing por trás da cantora.
Do lado de Michelle Bolsonaro, a ideia é suavizar a imagem bruta do atual presidente. Quando ele ataca jornalistas mulheres e foge a perguntas, a primeira-dama comenta: "Se para alguns parece estranho que o Jair tenha feito tanta coisa para a proteção das mulheres, é porque não conhece o presidente".
"O meu depoimento não é só de uma esposa que ama o seu marido. O Jair sabe que cuidar da mulher é cuidar da criança deficiente, é trabalhar dia e noite pela inclusão. Ele conhece a dor dessas mulheres. Eu sei quem é ele dentro de casa", disse, na tentativa de humanizar o presidente que ganhou forte rejeição pelos comentários sobre as mortes na pandemia da covid-19.
A real influência das companheiras dos dois principais candidatos à Presidência do Brasil ainda está por provar. Em agosto, as pesquisas mostravam que Michelle e Janja pouco influenciam na intenção de voto. De acordo com a Quaest, para 77% dos eleitores, a atual primeira-dama não interfere na escolha do candidato, enquanto 81% afirmava não sofrer influência de Janja.
Para já, a intenção do voto feminino está na maioria ao lado de Lula da Silva (45% disseram no final de agosto que iam votar em Lula). Jair Bolsonaro ainda concentra 29% dos votos femininos. Estes números tendem a mudar a cada semana à medida que se aproximam as eleições. A primeira volta vai acontecer a 2 de outubro.